Notícia
António-Pedro Vasconcelos: Hoje não podemos vender esperança
Sobre a mesa tem livros como “Portugal na Queda da Europa”, de Viriato Soromenho-Marques, “Reflexões sobre Estratégia VII – Tempos de Crise”, do General Loureiro dos Santos, e “A Europa à Beira do Abismo”, obra que tem a assinatura de economistas vários, como Joseph Stiglitz. “Não sendo economista, tenho de perceber a linguagem dos economistas, precisamente, para não ser dominado por eles”, diz o cineasta António-Pedro Vasconcelos, que vai estrear, em Novembro, o seu próximo filme, “Os Gatos Não Têm Vertigens”, que fala sobre um miúdo de 18 anos que acaba no terraço de uma senhora viúva. Que fala sobre a compaixão. “Neste momento, não há nenhuma utopia para vender. Mas há uma coisa que é perene e, se não resolve os nossos problemas, é um valor fundamental. É a compaixão pelo outro, é o amor, se quiser, no sentido mais puro. É o amor que S. Paulo defende na Epístola aos Coríntios”.
"Gosto imenso de pessoas. Faço conversa com todos os taxistas", disse numa entrevista. Porquê?
Vivo na Lapa há anos e desabituei-me de andar de metro. E deixei de andar de eléctrico porque, pura e simplesmente, não caibo lá dentro. Ando muito a pé, de carro e de táxi. De há uns anos para cá, os próprios motoristas metem conversa. Reconhecem-me do futebol. Apanho pessoas extraordinárias, casos humanos, tipos que perderam o emprego ou tipos divertidos. Gosto genuinamente de ouvir as pessoas, dou-me com toda a gente, não sou nada selectivo. E, como tenho este lado ficcionista, aproveito muitas das histórias que me contam.
Como se sente quando o reconhecem como comentador desportivo e não como cineasta?
É natural. O futebol é mais popular que o cinema. Muitos reconhecem-me como comentador desportivo, mas sabem que faço filmes. Há uns anos, no Porto, quando estava a fazer o "Jaime" (1999), aconteceu uma coisa engraçada. Eu tinha aparecido no programa "Os Donos da Bola" e montes de miúdos vinham pedir-me autógrafos. Um dia, virei-me para um deles e disse: queres um autógrafo só porque faço comentários de futebol? Nem sequer sou jogador. Ele responde: mas o senhor não é o realizador de cinema?
Muitos dos seus filmes são apontados como documentos sociológicos, como o "Jaime", por exemplo.
Tive sempre a preocupação de falar das coisas que vejo à minha volta. Por outro lado, os meus filmes são muito pessoais, os primeiros até são demasiado confessionais, como o "Perdido por Cem" (1973), o "Oxalá" (1981) ou "O Lugar do Morto" (1984). Mas nunca os revejo. Vejo os filmes quando estreiam, vou à sala anonimamente ver como reage o público. A sala faz parte da banda sonora de um filme. Quando as pessoas riem, preenchem uma parte dessa banda sonora. Os silêncios também são eloquentes, sobretudo quando as pessoas têm de digerir uma emoção. O realizador tem de ter a inteligência de prever esses silêncios e de os respeitar. Sou muito obsessivo quando o filme estreia, mas, depois, nunca mais o vejo. Em geral.
Tem medo de se confrontar?
Não tenho essa curiosidade, tal como não tenho curiosidade de ver fotos antigas. Mas, quando vejo, comovo-me. No outro dia, vi o filme "Emigrantes... e Depois?" e fiquei impressionado. Fiz esse documentário a seguir ao 25 de Abril, na Beira Alta. Voltei 40 anos atrás, a um momento e a um sítio precisos. Foi um local de onde partiram muitos emigrantes. Por outro lado, este é um documento sobre as contradições que o Verão Quente trouxe ao de cima. Muitas pessoas tinham sido sacrificadas pelo regime salazarista. E, no entanto, no espaço de um ano, houve uma espécie de apagamento do passado.
Vi um outro filme que não via há 35 anos, o "Oxalá", que é também um testemunho de época. A seguir ao 25 de Abril, houve imensos filmes revolucionários e empenhados, militantes. Isso, eu nunca fiz. Foram importantes, mas nunca fiz. No entanto, quando se percebeu que, a seguir ao 25 de Novembro, o ímpeto revolucionário tinha passado, a maior parte dos meus colegas passou a fazer filmes que tinham pouco a ver com a realidade, com registos mais confessionais. Eu tive sempre a preocupação de estar ligado à realidade.
Tem a ver com aquele célebre chavão de que o cinema português está divorciado da realidade? Ou divorciado do público?
Existe um mal-entendido enorme: a divisão entre cinema comercial e cinema de autor. E, aí, a crítica especializada tem sido nefasta. É uma distinção falsa e absurda. E revela falta de memória histórica. Eu sou contemporâneo do aparecimento da chamada política dos autores, uma ideia lançada por François Truffaut. Ele, pura e simplesmente, começou a falar dos autores para tentar provar que havia duas espécies de realizadores. Os realizadores que eram uns meros técnicos, e aos quais se dava a tarefa de realizar filmes. E os realizadores que eram autores, tal como um escritor ou um pintor é um autor. Truffaut defendia que o Hitchcock era tão autor como o Edgar Allan Poe ou o Dostoevsky. A crítica caiu-lhe em cima: ‘o Hitchcock?! É um comercialão’. Ou Howard Hawks, autor de "westerns". Estes realizadores conseguiam impor o seu estilo e, por isso, eram autores. Não há incompatibilidade entre cinema de autor e cinema de grande público.
Mas quem é que alimenta esse preconceito?
Existe esse mesmo preconceito em relação às actrizes. Uma actriz bonita não pode ser boa actriz. A Soraia Chaves é uma excelente actriz. Diga-me um único realizador português, sem ser eu, que tivesse ido buscar a Soraia. Zero. E porquê? Porque é bonita. É um absurdo total. É-me sempre ingrato entrar neste terreno, porque não quero falar dos meus colegas, mas toda a gente sabe que eu sou totalmente contra este sistema, um sistema que foi herdado do marcelismo, em que o Estado impôs umas taxas às salas de cinema para financiar o cinema português, mas depois chamou a si a decisão de seleccionar os filmes.
É a ditadura do gosto?
É a ditadura do gosto. É a política do António Ferro, de outra maneira. Não consigo perceber como é que os portugueses, e os meus colegas cineastas, aceitam que seja o Estado a decidir quem deve filmar. Ninguém aceitaria que fosse o Estado a decidir quem deve escrever ou pintar.
O Estado não deveria intervir, de todo?
Aí está o mal-entendido. O mercado é insuficiente para financiar o cinema português e, por isso, o Estado tem que intervir, tal como intervém em sectores que se consideram importantes, mas que não têm capacidade de, só por si, sobreviver. Em 1971, Marcello Caetano impôs obrigações nas salas de cinema. Hoje, a economia dos filmes faz-se através de toda uma cadeia de valores, que vai das salas às televisões. Para mim, faz todo o sentido que o Estado crie obrigações em toda a cadeia, incentivando os agentes a reinvestir uma parte ínfima das receitas no cinema. Portanto, o Estado deve intervir, mas deveria transformar as taxas em obrigações. Esta é uma luta que tenho há 40 anos. As televisões, etc, seriam obrigadas a investir, mas num jogo livre, em que os produtores teriam de convencer os agentes a investir no seu filme.
Em todo o mundo, as grandes cinematografias estão ligadas a produtores visionários que arriscaram em determinados produtos. Quem é que produziu o Buñuel? E ele era um realizador difícil. Quem é que produziu o Godard? A história do cinema é essa: convencer as pessoas que têm dinheiro a apostar em dados filmes. O Ruben Alves conseguiu convencer a TF1, que é do Bouygues, a meter dinheiro no filme "A Gaiola Dourada". A filha do Bouygues, proprietária da estação, pediu que a convencessem. E como a convenceram? O Ruben Alves chamou-a à janela e disse: ‘está a ver estes prédios? Sabe quem os fez? Foram os meus pais e a geração deles. É uma boa razão para investir no meu filme’. E a TF1 é altamente comercial. O cinema que tem alguma saúde é financiado, em grande parte, pelas televisões. Não há que ter medo disso.
Passaria para os privados todo o ónus de seleccionar e financiar os filmes?
Todos aqueles que vivem de "explorar" os filmes teriam de pagar, tal como pagam actualmente. Mas hoje pagam ao ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual, e o ICA escolhe cinco indivíduos que, em nome do povo português, seleccionam os filmes. Ora, estes indivíduos fazem parte de um lóbi poderoso que se instalou no cinema, e que é, fundamentalmente, o lóbi da crítica do Público e do Expresso. Há realizadores que vivem, exclusivamente, por serem considerados grandes autores, em detrimento de outros. Um filme como "A Gaiola Dourada" nunca teria condições para ser financiado em Portugal e, no entanto, prova que os espectadores portugueses estão ansiosos por filmes que lhes falem sobre o País.
Como responde às críticas que referem "A Gaiola Dourada" como sendo um filme cheio de estereótipos?
É um grande filme. E acho abusivo falar de estereótipos num filme de alguém que viveu aquilo. Existe um outro preconceito em Portugal, que é o preconceito em relação à comédia, como havia em relação ao "western". São géneros populares. E tudo o que é popular…
O sistema já provou, ao fim de 40 anos, que é perverso. E porquê? Em anos normais, o cinema português tem uma média de frequência para filmes nacionais de 0,4% a 0,5%, quando a média na Europa comunitária varia entre 20 e 23%. O público português não se revê nos filmes nacionais. Argumenta-se que o público é ignaro e que não podemos fazer recair a escolha sobre si. Então, acabemos com a democracia! Claro que o público engana-se muitas vezes, mas esse é o risco. O Estado tem que intervir, sim, mas de uma outra maneira.
Voltando à questão da rejeição de tudo o que é popular. É algo muito português?
É muito europeu, é muito snob. Em França, há filmes franceses com muito sucesso, mas que a crítica não tem em grande consideração. Um "autor que se preza" não faz comédias, mas então o que é a que a gente faz do Lubitsch, o que é que a gente faz do Chaplin, o que é que a gente faz do Billy Wilder? Sim, há um preconceito enorme em relação à comédia e ao género popular.
Falei no Chaplin, mas poderia falar no Capra, no Hitchcock, no Fellini, no Truffaut. Poderia falar em vários realizadores que tiveram imenso sucesso popular. É preciso considerar que o cinema, na sua génese, sempre foi uma arte popular. O cinema é uma arte popular. O cinema é uma indústria do entretenimento no sentido mais nobre do termo. Como o Shakespeare era, para os ingleses, um "entertainer", e um "entertainer" nobre.
Mas qual o peso real dos críticos?
É total. São os mesmos que condicionam a escolha dos filmes que se fazem. Durante anos, os meus filmes foram chumbados. O "Jaime" foi chumbado. O "Call Girl" (2007) foi chumbado. Não correspondem ao gosto. E não há escrutínio sobre os filmes. Não têm que dar conta nem dos resultados artísticos nem dos resultados financeiros. É ingrato falar do João César Monteiro, que já morreu. Mas como é que possível fazer-se um filme preto?
Não poderia cair-se num outro extremo se não existisse uma intervenção do Estado?
Esse é o argumento falacioso usado para justificar esta política. Primeiro, seria preciso explicar a bondade desta política. E nós já percebemos a que é que conduziu: 0,4% de espectadores e filmes que não são vendidos para lado nenhum, com uma ou outra excepção, filmes que não têm grandes prémios internacionais, com uma ou outra excepção. É um cinema que não existe, quer dentro quer fora de Portugal. O cinema português é tão conhecido como o cinema esquimó. Com uma ou outra excepção. Temos de encontrar outro sistema.
Onde foi buscar o financiamento do seu próximo filme "Os Gatos Não Têm Vertigens"?
O investimento do filme – que estreia no dia 25 de Novembro – vem do ICA.
Embora seja contra o sistema.
Ora, não sou estúpido. Até poderia estar em desacordo com o Sistema Nacional de Saúde, por exemplo, ou achar que deveria ser de outra maneira, mas não iria deixar de o utilizar. Desta vez, o filme foi feito com menos dinheiro do que é habitual e eu ressenti-me.
O filme fala sobre um rapaz de rua que acaba no telhado de uma senhora mais velha. É outro retrato de época?
Acho que é, mas nunca coloquei a questão de forma consciente. Entre o último filme que eu tinha feito e este, houve uma crise brutal, com políticas de austeridade destrutivas de tudo. E com falta de perspectivas. Vemos filmes neo-realistas que descrevem um mundo atroz, mas havia neles um horizonte de esperança. Vemos os filmes do Capra a seguir à Grande Depressão e há a mensagem do New Deal. Hoje, não podemos vender esperança às pessoas. Agarramo-nos a quê? Mas também acho que o cinema não pode deprimir. Foi algo que o Truffaut me ensinou. Um dia, ele disse-me: não se podem fazer filmes ingratos. A literatura pode, o cinema não.
Porquê?
Não podemos dizer às pessoas que o mundo é atroz e não tem solução. Não temos esse direito. Como diria o Woody Allen, este mundo é horrível, mas ainda é o melhor sítio para comer um bife. Isto é muito americano, mas é uma tradição americana que vem do Shakespeare e do Dickens. Temos a obrigação de descrever o mundo à nossa volta, os seus horrores e injustiças, sim. Mas, se eu descrevo a injustiça, é porque tenho uma perspectiva daquilo que é justo. As coisas não têm necessariamente de acabar bem. Mas temos de ter uma visão.
Que abra uma janela.
Que abra uma janela. Para ser honesto, não posso virar as costas à realidade mas também não posso dizer às pessoas que a situação vai melhorar se elas vierem para a rua. Ninguém vê como é que se pode sair da situação actual. Ninguém vê como é que os filhos vão estar melhor que os pais. Não há uma receita mágica. Eu podia acreditar numa utopia, mas neste momento não há nenhuma utopia para vender. Pela primeira vez, deparei-me com este problema. E pensei que não podia fazer um filme como "A Bela e o Paparazzo" (2010). Não é um filme fútil, mas é um filme sobre a futilidade. Não estou a renegar o filme, mas não poderia fazê-lo agora.
É uma espécie de "o homem e as suas circunstâncias". Neste caso, o realizador e as suas circunstâncias.
Tal como fiz um filme sobre a exploração de trabalho infantil numa altura em que Portugal entrou para a Europa. Ninguém falava nisso, assim como ninguém falou no fim da guerra. Como nunca consegui fazer um filme sobre a guerra – queria fazer o "Nó Cego" e nunca consegui –, fiz um filme sobre a ressaca da guerra. Sobre aqueles soldados formatados para ser heróis e que um dia acordam como os maus da fita. E fiz "Os Imortais" (2003). Assim como fiz o "Call Girl" – se é bom ou mau, não interessa –, um filme sobre a onda do capitalismo predador.
Atenção, eu sou um moderado, não está a falar com um revolucionário, nem com um terrorista, nem com um radical. Sou pelo mercado. Sou, se quiser, um social-democrata. Mas esta versão do capitalismo predador deixou-me aterrado. Tentei perceber porque é que este capitalismo ganhou a seguir ao fim da Guerra Fria. Ganhou porque o capitalismo é o que mais se aproxima da natureza humana. Da natureza humana sem freios. Temos uma compulsão natural por tudo o que a Igreja chama de pecados. E só existem duas formas de os refrear e permitir que as pessoas vivam em sociedade sem se matarem umas às outras. Por um lado, é através da virtude. Por outro lado, esse refrear é assegurado pelo Estado enquanto máquina que garante a solidariedade, a justiça, as oportunidades para todos.
O capitalismo globalizou não só o comércio, mas também os pecados.
Quando fiz o "Call Girl", pensei: se o dinheiro é o valor supremo e se não há freio para a satisfação dos apetites – repare, eu sou um epicurista, gosto dos prazeres sensoriais, não está a falar com um asceta –, o que é que faz com que um político, um polícia, uma mulher, um presidente de uma câmara, sejam honestos? E porque é que escolhi uma "call girl"? Pareceu-me o melhor exemplo. Parti de uma frase da Françoise Sagan. Um dia, um jornalista pergunta-lhe: você é ultramilionária, anda num jaguar descapotável, e continua a fazer livros de uma grande infelicidade. É infeliz? E ela responde: continuo a ser infeliz, mas prefiro ser infeliz no meu jaguar do que ser infeliz no metropolitano. Essa frase inspirou-me.
Retomando a questão do seu último filme. Disse que não tinha esperança para vender. Então, o que vende?
Algo muito simples. Uma coisa que eu acho que é perene e, se não resolve os nossos problemas, é um valor fundamental. É a compaixão pelo outro, é o amor, se quiser, no sentido mais puro. É o amor que S. Paulo defende na Epístola aos Coríntios. Nunca fiz filmes de amor neste sentido paulista. Os meus filmes podem obedecer à denominação geral de uma "doença chamada amor", mas não no sentido da abnegação, da dedicação. Isso é outra coisa. É um amor que um pai tem pelo filho, é um amor que as pessoas são capazes de ter numa comunidade. E este é um filme sobre isso. É uma história improvável de uma mulher de setenta e tal anos e de um jovem de 18 anos, que acabam por ter uma relação de amizade muito forte. São dois seres que estão a ser empurrados para fora da sociedade.
Onde é que se inspirou?
A mãe de um amigo meu viu um miúdo no seu terraço e, em vez de chamar a polícia, ajudou-o. E isso recordou-me uma outra história de uma amiga do Porto. Ela tem uma casa de Verão em Aveiro. Um dia, a polícia aparece-lhe à porta a dizer que a casa de praia tinha sido assaltada. Ela lá foi, aflita e, quando chega, vê tudo impecável, nada roubado. Achou que a casa até estava melhor e quis conhecer o jovem que tinha feito aquilo. "Mas a senhora ainda não viu o que está na cave", disse o polícia. A cave estava cheia de frigoríficos que o rapaz tinha roubado de outras casas. A minha amiga recusou-se a apresentar queixa: ‘os outros que apresentem. A mim, ele não roubou nada. Pelo contrário. Quero conhecê-lo’. Achei esta história extraordinária.
Mas isso é mesmo verdade?
Aconteceu, sim. Não gosto de filmes com mensagens, mas os filmes dizem sempre alguma coisa. E este fala sobre a capacidade de nos interessarmos pelo outro. Sobre a compaixão no sentido mais nobre. Não no sentido da caridade, mas do interesse genuíno. As iniciativas sociais de minimizar os custos da crise, como o apoio aos sem-abrigo, são indispensáveis, mas não atacam o problema a fundo. Deve existir um envolvimento político nas coisas.
Classificou-se com um social-democrata moderado.
Não. Não sou um social-democrata moderado. Sou um moderado, vírgula, chamemos-lhe social-democrata.
Então fiquemos assim. Ainda há pouco, como moderado, classificou a actual situação como monstruosa. Como é que, sendo moderado, acha que esta situação se reverte?
Sou um devorador de livros que expliquem o que nos está a acontecer. Não sendo economista, tenho de perceber a linguagem dos economistas, precisamente, para não ser dominado por eles. E o que está a acontecer parece ser completamente irracional. Com esta austeridade, a dívida aumenta, traduzindo-se em mais desemprego e emigração, sobretudo de talentos, em redução do poder de compra e, com isso, menos receita para o Estado. Portanto, tem de haver uma explicação. Penso que se trata de uma receita voluntária, com um objectivo ideológico claro, um programa ultraliberal para acabar com tudo o que foi o Estado Social criado no pós-guerra. E Portugal está a servir de balão de ensaio a esta ideologia, mais do que a Grécia.
Quais foram, para si, os grandes políticos em Portugal?
O [Mário] Soares foi o grande político. E alguns dos estrategas do 25 de Abril. O Melo Antunes, o Vasco Lourenço. Não sendo grandes políticos, permitiram que o país não se partisse ao meio. Eu nunca tive grande envolvimento político, a não ser na eleição de Mário Soares. Fui eu que fiz os tempos de antena do primeiro MASP e envolvi-me a sério. Para mim, era fundamental que fosse eleito alguém de esquerda, mas que fosse um democrata e um moderado. Alguém que, como Presidente da República, conseguisse fazer as pazes entre os portugueses e impedir a radicalização, quer à esquerda quer à direita.
E hoje, quem é que pode fazer as pazes?
Os meus amigos acham que eu sou algo esquizofrénico porque tenho uma visão muito negra em relação ao que está a acontecer. Acho que esta Europa acabou. Que já não existe. E que isto vai acabar muito mal. Que está à beira da implosão. Não sei quais os contornos. Acho impossível uma guerra na Europa, mas é possível uma guerra que alastre. Basta uma faísca. Há um autor que leio muito, o Paul Virilio, que é um catastrofista. Ele diz que é impossível não haver uma tragédia na Europa. E uma tragédia global. Pode ser ecológica, social, política. Ele fala na teoria das catástrofes, segundo a qual o mundo só evolui através dos desastres – para se viajar com segurança nos cruzeiros foi preciso existir o Titanic...
Mas não há caminho para reverter a tragédia? Ficamos contemplativos à espera?
Eu disse que os meus amigos acham que eu sou esquizofrénico. A história do Ocidente é uma história de sucesso e nós somos vítimas dele. A história do Ocidente é também uma história de tragédias, revoluções, guerras, ditaduras. Perdemos essa noção porque vivemos décadas de paz. A revolução industrial foi uma coisa fantástica pelas perspectivas que abriu ao mundo, mas os custos foram brutais. Hoje estamos perante uma revolução tecnológica que é única – o digital, a globalização e o problema das fontes de energia. São três revoluções que, juntas, são brutais. A Europa é feita de revoluções constantes porque é o continente do saber, da curiosidade, da ciência, da inteligência, da razão, da liberdade. E isso paga-se. Independentemente daquilo que é o aproveitamento e a crise induzida que o capitalismo predador imprimiu, a própria revolução dos três elementos que referi é suficiente para que tenhamos a percepção de que não há uma solução pacífica e reformista para esta crise. Por outro lado, as pessoas dizem-me: mas não é possível que os políticos não percebam que caminhamos para a desgraça. Eu digo: Porquê? Isso é partindo do princípio que as sociedades, os homens e os políticos se movem por impulsos racionais. Não é verdade.
E nunca foi?
Foi verdade em períodos de reconstrução, não em períodos que geram revoluções. O Hitler apareceu "ontem" e os anos 20, 30 do eixo Alemanha-Áustria corresponderam, talvez, ao período mais esplendoroso da Europa em termos culturais. No cinema, era o Murnau, o Fritz Lang. Na literatura, era o Stefan Zweig, o Thomas Mann, Brecht. Na arquitectura, tivemos a revolução da Bauhaus. Ainda estavam vivos o Freud e o Jung. O Einstein. Na música, o Schoenberg, o Bruckner. E veio um pintor de tabuletas, que era cabo-de-guerra, e tomou conta daquilo tudo. O mundo não se gere pela sensatez. Os próprios intelectuais acordaram tarde. Muitos não quiseram ver o desastre e andaram a assobiar para o lado.
E, neste momento, qual é o papel dos intelectuais? Estão a assobiar para o lado?
Passado o desastre, vem o progresso, e acredito que daqui a 100 anos possa existir uma nova Europa. De momento, estamos no meio do desastre. Mas, se tenho um lado pessimista, também sou um incorrigível voluntarista. Não me conformo com a situação e passo 90% da minha vida a pensar naquilo que posso fazer e quem é que posso mobilizar. Este é um lado kantiano que tenho. Um imperativo categórico. Um imperativo de consciência. Tenho que fazer a minha parte e cada um tem que fazer a sua parte. E, aí, choca-me a apostasia dos intelectuais. Estou a fazer algumas diligências para criar um movimento chamado "Dar a Cara" e envolver artistas e intelectuais em causas concretas. Em situações como os Estaleiros de Viana ou a privatização dos CTT. Sou pelo mercado onde o mercado funciona, com um Estado regulador e fiscalizador, mas há sectores estratégicos que não podem ser privatizados. Não pode ser o vale tudo. E cada um tem de fazer a sua parte, no bairro, na empresa…
Os intelectuais têm uma responsabilidade acrescida?
Têm de ter. A arte pela arte, a torre de marfim de que falavam Oscar Wilde e Mallarmé, teve o seu tempo. O artista tem que se envolver. O Dostoevsky perguntava o que é que era mais importante para um homem com fome: um quadro de Rafael ou um par de botas? Existem dois tipos de intelectuais, uns andam a assobiar para o lado, os outros não sabem como agir, e esse é o grande problema. E há uma outra coisa grave: não temos oposição. O Seguro destruiu qualquer hipótese de o PS ser alternativa.
O PS pode ganhar novo fôlego com António Costa?
Tenho sempre receio de apostar em homens providenciais, mas acho que, neste momento, a única esperança é o Costa, um homem bem formado, bem preparado, que provou ser capaz e estratega. Tenho esperança, mas não gosto muito do messianismo.
Considero-me um homem de esquerda, mas a esquerda tem enormes responsabilidades naquilo que aconteceu. De há muitos anos para cá. E tem dificuldade em fazer a sua autocrítica. Não digo que a direita o faça. Ninguém gosta de dar armas ao inimigo. Mas a esquerda radical deu os resultados que deu. E a terceira via acabou por ser o cavalo de tróia destas políticas.
No domínio das artes, em Portugal e não só, há toda uma postura da esquerda em relação às políticas públicas que é, a meu ver, desastrosa. O apoio ao cinema é defendido por toda a esquerda intelectual. São quase todos muito anarquistas, não gostam de se comprometer, mas o dinheiro do Estado é mais puro do que o dinheiro dos espectadores.
É virginal.
Faz-me lembrar uma história. Eu tinha a casa em obras, fui viver para casa de um amigo, o João Paulo. Estava lá há cinco dias, tocam à porta, vejo um indivíduo com um casaco todo coçado, a barba por fazer. Percebia-se que era um tipo que tinha tido uma boa vida. Pergunta-me: ‘o Dr. João Paulo está?’ Peguei em duas notas de vinte escudos, ele meteu-as no bolso e disse: ‘desculpe, arranja-me um bocadinho de álcool puro? Quero desinfectar as mãos porque detesto mexer em dinheiro’. É um pouco o que se passa com esta filosofia de muitos dos meus colegas que não gostam de mexer em dinheiro, mas depois pedem-no ao Estado. Destruíram o mercado e depois pedem ao Estado. Já vi filmes portugueses em que havia menos espectadores na sala do que personagens no ecrã. Já vi filmes portugueses em que havia menos espectadores do que estrelinhas no Público. Já vi filmes portugueses com dois espectadores, um deles era eu.