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Adeus, Pai

Isabel Soares despediu-se com um “até sempre, Pai”. João Soares com um “adeus, querido Pai”. Os dois filhos de Mário Soares fizeram discursos emocionados durante a sessão solene evocativa de homenagem a Mário Soares, que teve lugar no dia 10 de Janeiro, nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos. Intervenções cheias de alma que se perderam na imensidão das notícias e que o Negócios publica na íntegra. Para memória futura.

Pedro Nunes / Reuters
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Isabel Soares

Foi nossa vontade que a voz da nossa Mãe estivesse hoje aqui neste momento de despedida, companheira que foi, exemplar, de 66 anos de vida comum e de paixão total. Escolhemos este "Os Dois Sonetos de Amor da Hora Triste", do Álvaro Feijó, porque Ela os dizia como ninguém e porque representava bem a vida e o amor que foi o deles.

O olhar de uma filha é sempre um olhar embaciado pela emoção e pela ternura.

O Pai era, para o João e para mim, o nosso herói. Quando o Pai estava, tudo parecia seguro e tranquilo.

Ensinou-nos desde muito pequeninos a não termos medo do escuro, nem das ondas do mar da Foz do Arelho.

E nos dias cinzentos e de chumbo da ditadura, quando o íamos visitar ao parlatório do Aljube ou a Caxias, cheios de raiva contida e de lágrimas, porque a Mãe e o Avô nos diziam que não podíamos chorar na presença dos Pides, era ainda e sempre o Pai que nos dava alento, nos consolava e nos dava ânimo.

Foram tempos difíceis esses das prisões, da deportação em São Tomé e do exílio em Paris, mas que nos uniram como Família para sempre. Nunca durante esse tempo lhe ouvi um queixume, uma palavra de desalento ou de desânimo. Era o contrário! Era sempre Ele a consolar-nos! Era uma palavra de esperança e de certeza de que tudo iria mudar e que a liberdade estava para breve.

Como o Pai dizia permanentemente, só é vencido quem desiste de lutar! E foi essa a imagem que nos passou. Nunca desistir e lutar sempre por aquilo em que acreditávamos.

Nos dias cinzentos e de chumbo da ditadura, quando o íamos visitar ao parlatório do Aljube ou a Caxias, cheios de raiva contida e de lágrimas, porque a Mãe e o Avô nos diziam que não podíamos chorar na presença dos Pides, era ainda e sempre o Pai que nos dava alento, nos consolava e nos dava ânimo.

O Pai ensinou-nos a adorarmos a vida, a aproveitarmos cada minuto e a retirarmos o lado positivo mesmo das situações mais adversas. 

Em 1974, foi a explosão da liberdade e da democracia e eu reencontrei o Pai. E nesses dois anos da revolução, em que havia manifestações e contramanifestações todos os dias, andámos sempre juntos para todo o lado. Fizemos todas as campanhas de norte a sul do país, os dois sozinhos no nosso velho Renault 16.

Foi uma época exaltante em que se discutia tudo e em que tudo era possível, mas foi também e sobretudo de uma grande cumplicidade entre nós os dois. Cumplicidade que ficaria até ao fim.

Partilhávamos os mesmos gostos, dos livros aos quadros, aos amigos, aos banhos de mar e até às gravatas e aos fatos que íamos escolher juntos.

E depois havia Paris, onde ambos estivemos em períodos diferentes. O prazer das idas às livrarias, dos jantares na Coupole ou no Balzar, ou de apenas flanar nas ruas do Quartier Latin. O Pai ensinou-nos a adorarmos a vida, a aproveitarmos cada minuto e a retirarmos o lado positivo mesmo das situações mais adversas.

A Mãe dizia que éramos iguais de feitio, apaixonados e coléricos.

Depois afastei-me para me encontrar comigo própria. Deixei as campanhas e a vida partidária e virei-me para a minha profissão e para o Colégio Moderno, mas era ao Pai que voltava sempre quando tinha alguma dúvida ou precisava de um conselho. O Pai estava lá sempre presente, sempre com tempo para ouvir. Da mesma forma que o Pai me procurava quando queria saber a minha opinião, mesmo que depois fizesse o que quisesse, como na última campanha de 2006.

Nunca nenhum de nós, seus filhos, lhe faltou com o nosso amor incondicional. Aprendemos essa lição de vida da nossa Mãe. E é justo dizer isso aqui, que o Pai nunca teria feito o que fez ou chegado onde chegou sem a presença tranquila, serena e doce, mas firme, dessa mulher admirável que foi a sua. Tinham a mesma dimensão. E esse é o nosso maior orgulho.

Não sei como vamos viver sem si, sem a sua presença, e sobretudo sem os nossos almoços de domingo em que todos discutíamos ao mesmo tempo e nos atropelávamos no entusiasmo das palavras. Como diziam os nossos amigos: é muito difícil seguir uma conversa nesta mesa.

O Pai partiu como viveu, a lutar até ao fim, e rodeado pelos seus dois filhos, com a sua mão na minha. Posso garantir que todos nós, seus filhos e netos, honraremos a sua memória e manteremos viva a sua imagem e a sua Fundação.

Como dizia Baudelaire:
"Ô mort, vieux capitaine, il est temps! Levons l'ancre!
(…), ô Mort Appareillons!
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!"

Até sempre, Pai.



João Soares

Senhoras e senhores
Excelências

No início de Dezembro de 1967, a polícia política prendeu, mais uma vez, o meu pai. Passou então o Natal e o Ano Novo de 1968 na prisão de Caxias, com uma visita da família, uma vez por semana, quinze minutos, no parlatório, separados por grades. Depois, em meados de Fevereiro de 1968, soltaram-no. Voltou a casa, vindo da António Maria Cardoso de táxi, com um largo sorriso nos lábios. Foi ao Algarve com a minha mãe, por dois ou três dias. Sempre ostensivamente seguidos por Pides. Almoçaram lá com os seus amigos Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner, que testemunharam o ostensivo aparato dos esbirros. Mal voltaram a Lisboa, a PIDE voltou a prendê-lo. Comunicaram-nos, a minha mãe e a mim, que nos deslocámos à sede da PIDE, que o iam deportar para São Tomé, no dia seguinte. Decisão do Conselho de Ministros, disseram. Mentira, o Conselho de Ministros, então, não reunia. Salazar tomava a decisão com o director da PIDE e, se lhe apetecia, mandava assinar aos ministros. Decisão sem julgamento ou sequer audição prévia. Na tarde desse dia da partida nocturna para África, num voo que saiu da Portela depois de uma cena de violência estúpida de Pides. Caso raro, talvez único, para uma carga à bastonada de polícia em espaço público ter sido feita só por Pides. Nessa tarde, deixaram-nos, à família mais chegada, minha mãe, meu avô (então com oitenta e muitos anos), minha irmã e eu, ter um último encontro com meu pai. Que me lembre, das muitas, curtas e apertadas visitas que lhe fizemos nas suas numerosas prisões, a única que teve lugar numa sala do terceiro andar da PIDE, na António Maria Cardoso. Onde tinham lugar interrogatórios e tortura. Essa visita que deve ter durado pouco mais de dez minutos, na presença de esbirros claro, marca mais uma vez, para nós todos, a têmpera, a coragem e a força de ânimo de meu pai. Prestes a partir, não se sabia bem para onde, vítima da violência absurda de uma decisão arbitrária.

Nós, a minha irmã e eu, tínhamos aprendido há muito, com a minha mãe e ele, que não se chorava à frente dos Pides. Dessa vez, apesar do esforço, não fomos capazes de nos aguentar, bem como o nosso querido avô, seu pai, e minha mãe, sua mulher. Foi ele que nos deu ânimo a todos, firme, digno, corajoso como sempre. Essa é uma das muitas lições belas, e imagens fortes e ternas, que guardo de meu pai.

Quero, nesta hora triste de despedida, deixar aqui, enquanto filho, um testemunho de respeito, admiração e ternura por meu pai, Mário Soares.

Um respeito, uma admiração e ternura que se fundam numa proximidade única, tal como a da minha irmã Isabel. E que se prolonga por meus filhos, seus netos, noras, sobrinhos. Uma admiração, ternura e respeito que nada quebrou ao longo de toda uma vida. Nem algumas dificuldades, vividas depois da doença séria que meu pai sofreu há quatro anos. Uma ternura, respeito e admiração que se fundam também no exemplo de minha mãe, Maria de Jesus Barroso Soares, sua companheira durante 66 anos, que em circunstância nenhuma poderia deixar de ser referida aqui nesta hora de despedida, também como referência maior da vida de meu pai, Mário Soares, e da nossa família.

O seu modo de estar na vida e optimismo vieram-lhe de uma fibra, coragem, determinação e audácia que o marcaram sempre ao longo dos anos de ditadura.

Nós, seus filhos, netos, noras, sobrinhos, procuraremos ser fiéis, respeitar e preservar esse património único que meu Pai, Mário Soares, nos deixou a nós e a todos os portugueses. 

Uma ternura, um respeito e uma admiração que têm que ver com o amor à vida, o gosto por viver, que sempre o caracterizaram. Que marcou os bons e os maus momentos da sua vida, tão rica. Uma admiração, respeito e ternura que procurarão sempre prolongar o seu exemplo de amor profundo à nossa terra, Portugal. A sua confiança inquebrantável nos portugueses. Meu pai conhecia Portugal, as suas terras e gentes, maneiras de estar e viver, como poucos. Dos lugares mais recônditos do continente, às mais distantes freguesias dos Açores e da Madeira. E o mar português que sempre o encantou e onde adorava nadar. Conhecia e estudou, sempre, a História de Portugal, com uma paixão e um entusiasmo, magníficos. Que lhe vieram do exemplo de seu pai, meu avô João Soares, cujo nome não pode também deixar de ser evocado aqui nesta hora triste de despedida.

Uma admiração e respeito que têm que ver com o seu percurso cívico e político de homem livre, de homem de liberdade. Um percurso de intervenção, constante, que marcou Portugal e também de alguma forma a Europa e o mundo, depois da Revolução de 25 de Abril de 1974. Uma Revolução que esperou, e para a qual trabalhou, como costuma lembrar o seu amigo doutor Vasco Vieira de Almeida, durante mais de trinta anos, sempre para o mês seguinte. Uma Revolução onde o seu contributo de homem livre ajudou muito a abrir a Portugal um outro caminho. Meu pai, Mário Soares, afirmou-se como uma das grandes figuras do Portugal democrático, do 25 de Abril. E por mérito da sua intervenção cívica constante, do seu apego a Portugal e aos valores democráticos, ganhou um lugar entre as grandes figuras da Europa da segunda metade do século passado. De par e ombreando com seus companheiros, alguns amigos chegados, como Olof Palme, Tierno Galván, Bruno Kreisky, Shimon Peres, François Mitterrand, Felipe González e, "primus inter pares", Willy Brandt. Todos, por mais de uma vez, vieram a Portugal a seu convite. E deram provas, algumas bem importantes, de solidariedade e respeito pela nossa Pátria. Ocupou e desocupou, por via eleitoral democrática, os mais elevados e variados cargos políticos. Que sempre procurou exercer, e na minha opinião exerceu, com seriedade e elevação. Na fidelidade aos seus valores de sempre. Respeitando, por vezes mesmo honrando, adversários políticos. De bem consigo, com o mundo. E nesse plano foi sempre um exemplo extraordinário de alegria e vontade de viver. Nos bons e nos maus momentos da sua longa vida.

O seu modo de estar na vida e o optimismo vieram-lhe de uma fibra, coragem, determinação e audácia que o marcaram sempre ao longo dos anos de ditadura. Porque, além dos cargos, responsabilidades e honrarias várias, é bom não esquecer, ele viveu, com os seus 92 anos feitos há pouco, como lembrou há dias Manuel Alegre, mais tempo em ditadura do que em liberdade. E viveu, importa recordar, até para compreender e procurar seguir o exemplo, com uma capacidade de resistência e uma coragem excepcionais. Como uma vez me lembrou, com satisfação, o seu amigo Salgado Zenha. Na direcção do MUD Juvenil, presa em 45, só Zenha, meu pai e um outro companheiro se recusaram, firme e taxativamente, a qualquer declaração aos esbirros da PIDE.

Meu pai, não sendo o preso político mais tempo privado de liberdade, somou cerca de quatro anos, entre prisão e deportação sem julgamento. Sofreu um número de prisões elevado, treze. Contando com a deportação para São Tomé em 1968. Partiu para um exílio de quatro anos em França, depois de ter vindo, sem nenhuma garantia de que não seria preso, para assistir ao funeral de seu pai. Trabalhou em França durante o exílio, nas universidades de Nanterre e Rennes. Fez por lá, ao contrário do que disseram as muitas calúnias da ditadura e não só, uma vida simples. Honrou, sempre - minha irmã e eu somos testemunhas próximas disso ao longo de muitos anos - a sua Pátria Portugal e a sua bandeira. Que, ao contrário do que a PIDE pôs a circular, nunca pisou, pelo contrário, sempre ergueu bem alto. Quero sublinhá-lo aqui, mais uma vez, nesta hora da despedida.

Meu pai, Mário Soares, fundou e organizou, com os seus companheiros e camaradas, o Partido Socialista. No momento histórico certo, honra lhe seja feita por isso. Partido cuja bandeira foi, também, sempre a sua.

Procurou, à sua maneira, ser sempre fiel às suas amizades. Com os percalços naturais numa vida tão longa e tão rica. Entre as quais se contaram e contam algumas das figuras mais ilustres da nossa vida cívica e cultural. De Jaime Cortesão a Miguel Torga, de Aquilino Ribeiro a Agostinho da Silva, de Júlio Pomar a Maria Helena Vieira da Silva, de Salgado Zenha a Manuel Mendes, de Sophia de Mello Breyner a Manuel Alegre. Sempre constante no amor a Portugal, na convicção firme na nossa capacidade de, portugueses, conseguirmos fazer face às dificuldades e desafios.

Com um sorriso sempre confiante.

Como nos habituámos a vê-lo, minha irmã e eu, separados por grades, com um Pide no meio, no sórdido parlatório do Aljube em Lisboa. Quando saía dos "curros" para uma visita de quinze minutos por semana. Sem nunca perder a sua firme e digna alegria de viver. Bem pelo contrário.

Quero assegurar-vos que nós, seus filhos, netos, noras, sobrinhos, procuraremos ser fiéis, respeitar e preservar esse património único que meu Pai, Mário Soares, nos deixou a nós e a todos os portugueses.

Agradeço em nome da família ao senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao senhor presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e muito especialmente ao senhor primeiro-ministro, António Costa, enquanto primeiro-ministro e enquanto líder do seu, nosso, Partido Socialista, as honras prestadas a meu pai. Uma palavra final de gratidão a todos os que deram o seu melhor, comunicação social, forças de segurança, músicos, militares e civis, para que esta cerimónia fosse possível. Muito especialmente, se me permitem, ao engenheiro José Manuel dos Santos que, incansável, teve um papel decisivo no desenho e realização desta homenagem.

Obrigado, obrigado a todos.

Adeus, querido Pai.

Nos céus, seis aviões F-16 da Força Aérea prestaram homenagem ao antigo Presidente, sobrevoando os Jerónimos quando  a urna saiu em direcção ao cemitério dos Prazeres.
Nos céus, seis aviões F-16 da Força Aérea prestaram homenagem ao antigo Presidente, sobrevoando os Jerónimos quando a urna saiu em direcção ao cemitério dos Prazeres. Bruno Simão
O cortejo fúnebre de Soares passou pela Câmara de Lisboa.
O cortejo fúnebre de Soares passou pela Câmara de Lisboa.

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