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Portugal deve encontrar novos modelos de gestão de água

Alterações à Lei da Água são essenciais num quadro de crescente escassez hídrica, sendo que o Algarve é visto como a região mais problemática do país. Já a cooperação internacional é apontada como uma “questão de soberania”, dada a elevada dependência de Portugal de rios internacionais.

Sónia Santos Dias 26 de Outubro de 2023 às 14:00
O debate contou com a participação de Joaquim Poças Martins, José Pedro Salema e Nuno Lacasta e teve a moderação de Sónia Santos Dias.
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As mudanças aceleradas que estão a ocorrer a nível ambiental, económico, tecnológico e até sociológico estão a trazer uma maior complexidade à gestão da água, levando à necessidade de repensar a sua gestão a nível nacional e internacional. Esta foi uma das ideias-chave do debate "Água - Como enfrentar a escassez do ouro azul? As políticas públicas em Portugal", integrado na conferência "Ambiente |Água e Resíduos, os desafios de Portugal", que teve lugar a 19 de outubro, no Pestana Palace, em Lisboa.





A abrir o debate, Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), salientou que "o grande desafio na próxima década é perceber que a quantidade de mudanças que temos em cima da mesa pode levar a uma gestão de todos os processos muito mais complexa do que tem sido feita tradicionalmente".


Tendo em conta que se perspetiva uma redução de disponibilidade hídrica de 23% a 40% nas próximas décadas, é preciso "mudar radicalmente a forma como gerimos os nossos recursos". Para o presidente da APA, sobretudo no Sul do país, que tem experimentado uma seca estrutural, "os modelos de gestão da água que conhecíamos até aqui estão em risco". Em termos de soluções, uma vez que "os cenários estão a mudar", Nuno Lacasta considera que "temos de ser capazes de recorrer a todas as torneiras disponíveis".


Também a relação com Espanha tem de ser feita de uma forma "completamente diferente daquela que temos tido nos últimos 25 anos", sendo que em 2023 se comemoram os 25 anos da Convenção de Albufeira, a diretiva de cooperação em matéria de água entre os dois países. Para Nuno Lacasta, trata-se de "uma questão de soberania, pois 46% da água que consumimos em Portugal é de rios internacionais, pelo que Portugal e Espanha têm de se tornar mais interdependentes em termos dos usos de ambos os lados da fronteira".


O presidente da APA vê o Algarve como "a região líder do país" em termos de água, por uma questão de necessidade, uma vez que "é a única região do país que reúne o nível de compromisso dos diferentes atores, públicos e privados, e é a única região do país que tem os instrumentos de planeamento, gestão e financiamento para gerir a oferta e a procura".


Destaca que a dessalinizadora que está a ser contruída será uma parte importante do mix de soluções para a região. Quanto ao elevado peso da agricultura do consumo de água, Nuno Lacasta destaca que o seu consumo não tem sido estudado, mas "agora precisamos de garantir que é feita esta relação". Exemplificando que deverá ser possível permitir ou não determinados tipos de culturas agrícolas mediante a disponibilidade de água e tipo de solo, "temos de ser capazes no futuro, como faz Israel, de dizer que neste solo, com esta água disponível e este clima, não podemos ter, por exemplo, girassol e podemos ter outro tipo de cultura". Acrescentando que "no Algarve temos de ir nesse sentido, porque já temos algumas sub-regiões onde não é difícil concluir que não vamos ter água disponível".


Em termos de reutilização de água, vai ser aumentada de um para oito na região do Algarve, tendo sido já duplicada em três anos, referiu Lacasta. "Vamos ter de ser capazes de utilizar uma fonte que, no caso português, é inferior a 2%, quando na vizinha Espanha anda perto dos 10-12%". Também destaca que é preciso melhorar a medição das águas subterrâneas, considerando que é importante alterar a Lei da Água para se conseguir implementar algumas medidas.

"Temos de dar o próximo passo. Em condições de seca ou seca extrema, temos de ser capazes de, por questões de interesse público, dizer em determinadas situações, mesmo nas captações existentes, a água que podem utilizar tem de passar de sete para seis, por exemplo, durante este período, e a lei atual não nos permite fazer isso", defendeu.

Para o presidente da APA, é necessário também que as diversas regiões do país tenham Pactos de Água, que reúnam consensos em termos de disponibilidade de água entre os diversos intervenientes na região, para uma gestão da água otimizada.


Não se mede o consumo de água na agricultura

Joaquim Poças Martins, secretário-geral do Conselho Nacional da Água (CNA) e especialista em gestão hídrica, começou por trazer "uma mensagem positiva", referindo que "temos água suficiente em Portugal e no mundo, se a soubermos usar bem e tivermos bom senso". Considera que em Portugal, apesar das "dificuldades muito grandes de gestão da água, as secas prolongadas e severas hoje não chegam às torneiras graças a políticas públicas coerentes em mais de 30 anos".

Para o especialista em gestão hídrica, tanto em Portugal como no mundo, existe um "conjunto de torneiras" que ainda não foram usadas e que, a serem aplicadas, conseguirão resolver os problemas. Tendo em conta que a água da chuva será cada vez menor, assim como não aumentará a água proveniente de Espanha, Poças Martins aponta o recurso a transvases e armazenamento de água, a reutilização de água e a dessalinização como possíveis recursos. "Temos neste momento 600 milhões de metros cúbicos de água em Portugal, que é mais do que o Alqueva tem, que não estão a ser usados". Para Poças Martins, a eficiência é também uma arma a usar na gestão da água.

"Temos 200 entidades gestoras que têm mais de 20% de perdas", apontou. Salientou também que nos grandes consumos em Portugal, nomeadamente o agrícola, "não medimos 90% dos consumos".


Para o secretário-geral do CNA, o principal problema do país neste momento, em termos de gestão de água, é o Algarve. "No Algarve, muito simplesmente, não há água que chegue", referiu.


Tendo em conta que o turismo gasta 12 milhões de metros cúbicos, os residentes 40 milhões de metros cúbicos e a agricultura 120 milhões de metros cúbicos de água, considera que existem várias soluções para melhorar a sua gestão. "Nós temos 120 milhões de metros cúbicos gastos na agricultura que não é medida e pode ser reduzida. Se se reduzir esse consumo, pode equacionar-se o balanço hídrico do Algarve de outra forma e aplicar-se, por exemplo, mais ou menos dessalinização", defendeu.


O gestor evidenciou também soluções aplicadas por outros países. "Na Namíbia, bebe-se água que já foi esgoto, a Austrália tem 30% do consumo assegurado por água dessalinizada e em Israel dessalinizam água para 90% da população e reutilizam praticamente 100% das águas residuais." Poças Martins aponta razões económicas para estes comportamentos, exemplificando que em Israel os agricultores pagam metade do preço por água residual comparativamente com água proveniente de um poço.


Considerando que existem várias "soluções exequíveis" para Portugal, destacou que "não é preciso aumentar o preço da água, o problema não é esse, tem é de se medir e controlar consumos".


Alqueva está a atingir a capacidade máxima

A Barragem do Alqueva é o maior reservatório de água artificial da Europa e tem reserva para três anos de seca, ocupando um lugar de destaque na gestão da água a nível nacional. Presente também no debate, José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, destacou que rega cerca de 130 mil hectares de agricultura de regadio no Alentejo, serve o abastecimento público de Beja, Évora e circundantes, e também algum abastecimento industrial, entre os quais o perímetro de Sines, que desde 2022 tem uma ligação direta ao sistema do Alqueva.

Quanto a poder servir também o Algarve, dadas as dificuldades desta região, "a tentação é grande, não só a portuguesa como a de alguns vizinhos", salientou o presidente da EDIA. Porém, "o problema é que o sistema está desenhado para uma determinada utilização e nós estamos a atingir a nossa capacidade".


Em 2022, foram retirados do Alqueva cerca de 560 milhões de metros cúbicos de água e, em 2023, o volume andará na mesma ordem, salientou José Pedro Salema, sendo que "a concessão, ou seja, a autorização do Estado português para retirar água daquele sistema é de 620 milhões. Nós estamos muito perto". Além de que, recordou o responsável, existem outros projetos em marcha que também irão contribuir para se atingir a capacidade máxima. "Se inventarmos um novo destino, vai faltar água em algum sítio", sublinhou.


Já no que respeita à utilização maioritária da água para a agricultura, José Pedra Salema "saltou em defesa" da mesma, alegando que a agricultura não é a "má da fita" porque "temos de comer e o que a agricultura faz é transformar água em alimento". Destacou também que Portugal não é rico em termos agrícolas. Pelo contrário, "Portugal tem um deficit na sua balança alimentar e tem a ambição de ser equilibrado nessa balança, pelo que temos de produzir mais".

O presidente da EDIA exemplifica como casos de sucesso projetos de regadio que estão a atrair investimento e criar riqueza. "Nós devíamos usar mais água na agricultura, ou seja, estou a defender mais regadio, mais zonas onde se possa utilizar água de forma artificial para produzir mais alimentos". Isto porque, defende também, "Portugal tem recursos hídricos abundantes, mesmo com as reduções previstas de 30% a 40% nas nossas afluências. As disponibilidades hídricas são mais do que suficientes para o nosso consumo."

Concorda, porém, que "a agricultura também tem de fazer um esforço de melhoria da eficiência e deve socorrer-se igualmente de águas reutilizadas e de várias tecnologias para uma melhor gestão hídrica".

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