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Atraso na gestão de biorresiduos é “indicador da falta de coesão territorial”

Recolha seletiva de biorresíduos em Portugal Continental é obrigatória desde 1 de janeiro, mas a situação é muito dispare no território e entidades oficiais desconhecem como estão a ser executadas as medidas.

05 de Janeiro de 2024 às 10:22
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Desde a passada segunda-feira, 1 de janeiro, que os 278 municípios em Portugal Continental estão obrigados a fazer a recolha seletiva de biorresiduos descartados pelos munícipes, de forma a levar o país rumo a uma economia mais circular. Porém, não existem dados oficiais sobre a situação no país e as entidades oficiais desconhecem mesmo como estão a ser executadas as medidas.

"Os biorresíduos são um bom indicador da falta de coesão territorial. Esta capacidade para cumprir a legislação não é a realidade do país inteiro", referiu Luís Almeida Capão, presidente da Cascais Ambiente e da Associação Limpeza Urbana (ALU), ao Negócios, acrescentando que "o mais importante é adotar sistemas que funcionem localmente e que tenham custos controlados".

A própria ALU não tem dados concretos para fazer o retrato do país, segundo disse a mesma ao Negócios. Também a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) referiram à agência Lusa que não têm dados sobre quantos municípios estão a fazer esta gestão e de que forma, apesar de ser espectável que todas as câmaras tivessem iniciado um sistema de recolha até 31 de dezembro de 2023, no âmbito da Diretiva-Quadro dos Resíduos da União Europeia, que estabelece as metas para a reciclagem de resíduos urbanos. "É um desafio enorme, mas é um desafio em que estamos a fazer tudo à pressa", disse à Lusa Paulo Lucas, da associação ambientalista Zero.

Segundos o ambientalista, os municípios estão "impreparados", não recorrem geralmente a modelos de recolha eficientes e eficazes, e muitos fazem o mais fácil, que é juntar um novo contentor ao lado do que já recolhe o lixo indiferenciado, o que pode até ficar mais caro para a câmara do que desenvolver um sistema adaptado às necessidades.

Para Paulo Lucas, os biorresíduos são fundamentais no processo de reciclagem, porque representam "40% daquilo que está nos resíduos urbanos" e são "mais difíceis de serem geridos do ponto de vista da separação nas habitações".

"O cenário atual é de 20% de recolha seletiva e de 80% de recolha indiferenciada. Ou seja, nós temos que fazer aqui quase um [efeito de] espelho. Temos que fazer uma mudança rápida e drástica neste processo. A recolha seletiva tem que passar a ser os 80%. E isso vai ser um processo extremamente difícil", considerou.
Em resposta à Lusa, o Ministério do Ambiente destacou que os municípios têm acesso a apoios financeiros para desenvolverem sistemas de recolha seletiva e "um conjunto de incentivos", nomeadamente através da Taxa de Gestão dos Resíduos (TGR).

Estes incentivos, segundo o Ministério, incluem a devolução direta de verbas às autarquias pelos investimentos em projetos que promovam o aumento da recolha seletiva, o tratamento na origem de biorresíduos e a recolha multimaterial, possibilitando que "os municípios que cumpram os objetivos definidos nos seus planos de ação não vejam agravado o pagamento anual de TGR".

O Ministério salientou ainda que no PT2030 "estão previstos 286 milhões de euros para apoiar investimentos [de sistemas] na 'baixa', que serão distribuídos num contexto regional, através das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e Comunidades Intermunicipais (CIM), e 114 milhões de euros para apoiar investimentos na 'alta'".

Que sistema implementar

Os biorresíduos são restos de legumes, fruta, carne, peixe, pão, cascas de ovos, entre outros, bem como de resíduos verdes resultantes de jardins ou espaços verdes. Tal representa cerca de 200 kg por pessoa, por ano, o que no final de um ano dará algo próximo dos dois milhões de toneladas de biorresíduos. Recursos estes que podem ser aproveitados para dar origem a fertilizantes, biocombustíveis, produção de energia, etc. "Não somos um país rico e, por isso, não podemos desperdiçar recursos, nem oportunidades", salienta Luís Almeida Capão.

O líder da Cascais Ambiente destaca que neste município a recolha seletiva de biorresíduos para o setor doméstico começou em 2018, num projeto-piloto com 500 famílias, e antes do final de 2023 o sistema foi alargado a 100% do território "com 90% das famílias de Cascais a aderirem ao novo sistema".

Os munícipes recebem em casa um contentor de 7 litros, um rolo de sacos verdes e informação sobre o que são os biorresíduos. Os resíduos são colocados no saco verde que é depositado no mesmo contentor onde se coloca o lixo comum. Recolhidos pelos habituais camiões da Cascais Ambiente, os sacos são levados para a Tratolixo onde, através de um separador ótico, os biorresíduos são reaproveitados para a produção de energia.

"Este sistema que escolhemos para Cascais é muito confortável, muito prático, o que faz com que as pessoas adiram. Apostámos na sensibilização porta-a-porta para mostrar a cada cascalense as vantagens dos sacos verdes, tanto na preparação doméstica como no transporte, na triagem na Tratolixo e na produção de energia e composto. Como resultado conseguimos recolher 1865 toneladas entre janeiro e novembro de 2023 com o sistema de sacos óticos. Ainda não temos os dados de dezembro fechados, mas estimamos atingir as 2 mil toneladas em 2023 (mais 2 mil no canal Horeca). Em 2024 vamos seguramente subir muito este número", conta ao Negócios.

A opção por este sistema justifica-se por "ser à prova de crise: requer pequenos investimentos anuais porque não temos contentorização, frota ou operação dedicada", acrescenta.

A Zero defende que o melhor será implementar um sistema que tenha em conta as especificidades dos territórios. Se há locais mais pequenos, onde a compostagem doméstica pode ser mais racional, na generalidade dos municípios maiores poderá ter melhor resultado um sistema de recolha seletiva porta a porta, porque responsabiliza o cidadão ao obrigá-lo a separar os resíduos em casa e a depositar o lixo em dias específicos consoante o seu tipo.

"Efetivamente os municípios estão muito reticentes em avançar com esta abordagem, que é uma abordagem que na realidade obriga o cidadão a ter que participar mais", declarou, defendendo que têm de ser criadas condições para a participação das pessoas, caso contrário elas vão acabar por desistir, "porque efetivamente não têm benefícios, nem são penalizadas por participarem ou não".

A associação ambientalista admite também a colocação de contentores para biorresíduos na rua, mas defende que, quer estes quer os contentores com o lixo indiferenciado, devem ser mantidos fechados para evitar a sua utilização aleatória, mas com controlo de acessos por um cartão eletrónico apenas por quem está autorizado.

À Lusa, a APA informou não dispor de dados sistematizados sobre como decorre a recolha de biorresíduos pelos municípios, mas adiantou que pretende "reunir essa informação através dos Planos de Ação de Resíduos Urbanos dos Municípios e Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos, que ainda estão a ser entregues, bem como do registo de dados no Mapa Integrado de Registo de Resíduos Urbanos referente ao ano de 2023".

 

 

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