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Portugal ainda não está preparado para a recolha de biorresíduos

Faltam seis meses para a obrigatoriedade da recolha de biorresíduos, mas o país ainda tem um longo caminho a percorrer. Técnicos dizem que municípios não estão preparados, mas autarquias discordam. Para já, falta informação aos consumidores sobre o que terão de fazer e também não está claro quem vai pagar a fatura deste novo serviço.

21 de Junho de 2023 às 10:00
A recolha seletiva de biorresíduos vai ser obrigatória a partir de 1 de janeiro de 2024. DR
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A recolha seletiva de biorresíduos em Portugal Continental vai ser obrigatória a partir de 1 de janeiro de 2024, o que vai exigir uma nova operação por parte de 278 municípios e operadores e novos comportamentos do lado dos cidadãos.

A seis meses do prazo, muito está ainda por fazer. Salvo raras exceções, segundo os técnicos a maioria das autarquias não está num estado avançado de preparação e os cidadãos não estão informados sobre esta nova tarefa. A Associação Nacional de Municípios discorda, garantindo que tem sido feito um percurso "notável".

Num país que falha sempre as métricas dos resíduos, e onde cada pessoa produz 1,4 kg de resíduos por dia e onde a maioria dos resíduos vai para aterro (56%), segundo o último Relatório do Estado do Ambiente, a nova lei dos resíduos biodegradáveis tem potencial para retirar ao país esta "má reputação", na medida em que 37,4% de todos estes resíduos produzidos são biorresíduos.

E o que são biorresíduos? Estamos a falar de restos de legumes, fruta, carne, peixe, pão, cascas de ovos, entre outros, bem como de resíduos verdes resultantes de jardins ou espaços verdes. Tal representa "cerca de 200 kg por pessoa, por ano, o que no final de um ano dará algo próximo dos dois milhões de toneladas de biorresíduos", sintetiza Sara Correia, técnica da Zero na área de resíduos.

O Plano Nacional de Gestão de Resíduos 2030 (PNGR) e o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos 2030 (PERSU), aprovados em março, pretendem levar o país rumo a uma economia mais circular. E na área dos biorresíduos, Portugal deve estar preparado até ao final de 2023.

Estará? O país "neste momento não está preparado". "O processo é complexo e está a ser preparado, mas a um ritmo inferior ao desejado, sobretudo por se tratar talvez do mais desafiante e exigente fluxo de resíduos", refere Paulo Praça, presidente da Esgra - Associação para a Gestão de Resíduos.

Segundo o responsável, a operacionalização da recolha seletiva de biorresíduos em tempo útil dependerá da concretização de ações como a conclusão de obras de remodelação, readaptação ou construção de unidades de valorização orgânica dos sistemas de gestão de resíduos urbanos. Dependerá também, diz, do fornecimento atempado de equipamentos, como chassis de viaturas, contentorização, sistemas elétricos de apoio e da contratação de pessoal, da disponibilidade financeira para fazer face ao aumento de custos previstos e da adesão da população.

Também Sara Correia considera que o país não está pronto para tamanha alteração. "Não se pode dizer que Portugal esteja preparado quando a seis meses da data limite [os municípios] ainda não definiram a estratégia de recolha ou estão ainda a dar os primeiros passos na implementação da mesma. Há uma despreocupação geral sobre este assunto."

Há necessidade de acelerar a implementação da recolha seletiva de biorresíduos durante este ano. Luísa Salgueiro
Presidente da ANMP
Visão diferente tem Luísa Salgueiro, presidente da Associação Nacional de Municípios (ANMP), que considera que Portugal "tem feito um percurso notável na valorização do resíduo como um recurso". "Já existem vários sistemas e instalações a funcionar, mas há necessidade de acelerar a implementação da recolha seletiva de biorresíduos durante este ano". E recorda que "com a publicação do PERSU 2030, os sistemas de gestão de resíduos e os municípios terão de apresentar até novembro os seus planos de ação e, em paralelo, dar cumprimento ao Regime Geral de Gestão de Resíduos. É que define que a partir de 1 de janeiro recolha seletiva de biorresíduos ou a sua separação e reciclagem na origem é obrigatória".

Apesar de não indicar números, Luísa Salgueiro revela que "por todo o território existem bons exemplos da recolha de biorresíduos, seja porta a porta ou através de contentores". "O importante será garantir que estes projetos ganhem dimensão e assegurem o correto desvio desta fração dos resíduos indiferenciados", frisa.

Os bons exemplos

No início do ano, Cascais tornou-se no primeiro concelho a fazer a recolha de resíduos orgânicos, bem antes da meta obrigatória. Os munícipes recebem em casa um contentor de 7 litros, um rolo de sacos verdes e informação sobre o que são os biorresíduos.

Os restos de comida, as sobras da preparação das refeições e os alimentos degradados são colocados no saco verde. Depois, basta fechá-lo e colocá-lo no mesmo contentor onde se coloca o lixo comum. Recolhidos pelos habituais camiões da Cascais Ambiente, os sacos são levados para a Tratolixo onde, através de um separador ótico, os biorresíduos são reaproveitados para a produção de energia.

"É uma forma muito cómoda para os munícipes, porque podem levar o lixo às horas que quiserem, sem terem de alterar as rotinas. É um sistema limpo, porque os sacos estão fechados, o que previne maus cheiros e pragas, e é uma forma de não ocupar a via pública com mais um contentor", diz Luís Almeida Capão, presidente da Cascais Ambiente e da Associação Limpeza Urbana. Desta forma, e em jeito de balanço de alguns meses de operação, Luís Almeida Capão revela que o sistema já está a recolher 22% do potencial do peso de biorresíduos nos contentores, sendo que o objetivo é atingir os 50%.

Na qualidade de presidente da associação, e numa visão alargada, destaca que "a realidade portuguesa é muito diversa", mas que bons exemplos estão a ser levados a cabo também pelos concelhos de Mafra, Sintra, Oeiras e Braga, que fazem o mesmo processo de recolha, ou seja, através de sacos verdes colocados nos contentores de lixo comuns.

"Não temos dúvidas de que, do ponto de vista da operação, este é o sistema mais eficaz e mais barato, porque não aumentamos o número de camiões, nem as equipas. Estudámos todos os sistemas e concluímos que face a outros teoricamente possíveis - porta a porta ou recolha em contentor e por camiões dedicados - a recolha de biorresíduos em sacos verdes representa uma poupança efetiva para o município.

Na Cascais Ambiente temos recebido autarquias que nos visitam para conhecer o sistema que temos implementado. Luís Almeida Capão
Presidente da Cascais Ambiente
Este é um sistema à prova de crise", defende Luís Almeida Capão. Porém, no país, "as diferenças são de tal ordem que muitos concelhos ainda nem sabem que sistema vão adotar para a recolha seletiva de biorresíduos". "Na Cascais Ambiente temos recebido autarquias que nos visitam para conhecer o sistema que temos implementado e percebemos que muitos estão condicionados pelos sistemas de recolha seletiva multimaterial escolhidos há muitos anos."

Relativamente aos métodos mais eficazes, a Associação Zero analisou, no início do ano, as propostas de 84 municípios e concluiu que a maioria vai apostar na recolha na via pública. Porém, a associação ambientalista é defensora do modelo porta a porta.

A eficiência do modelo porta a porta é sustentada pelos bons resultados verificados em várias cidades europeias onde o sistema é aplicado. Sara Correia
Técnica da Zero
"Esta eficiência é sustentada pelos bons resultados verificados em várias cidades europeias onde o sistema é aplicado, tanto para biorresíduos como para outros fluxos, sendo particularmente eficaz quando conjugado com um sistema PAYT (‘pay-as-you-throw’), o qual permite beneficiar quem separa penalizando quem não o faz, colocando, desta forma, no produtor, a responsabilidade pelos resíduos que produz", explica Sara Correia.

No entanto, adianta também, "é possível obter bons resultados com um modelo de recolha de proximidade, desde que o contentor de biorresíduos e o contentor vulgar dos resíduos indiferenciados sejam ambos de acesso controlado".

Luísa Salgueiro, presidente da associação Nacional de Municípios, salienta que o território é muito diverso e a escolha do modelo terá de ser estudado caso a caso. "O mesmo município pode ter modelos complementares que potenciem a separação e recolha". E exemplifica: "Sabemos que no canal Horeca são grandes produtores de resíduos alimentares, pelo que as melhores experiências nos dizem que os modelos mais indicados para esta tipologia de produtores é a recolha seletiva porta a porta. Mas, para o setor residencial, existem diferentes soluções que se integram entre a recolha porta a porta e a recolha de proximidade."

Para Luísa Salgueiro, independentemente da solução será importante, no modelo que se implementa, garantir a participação e envolvimento da população, a qualidade do resíduo separado e a sustentabilidade financeira do projeto que se implementa".

Quem vai pagar a fatura?

Uma nova operação vai exigir, à partida, mais investimento. Mas tudo dependerá também da valorização que será dada a estes resíduos de forma a contrabalançar os novos gastos.

A recolha destes resíduos tem inúmeras potencialidades, desde logo permitir um maior aproveitamento de outro tipo de resíduos. Paulo Praça
Presidente da Associação para a Gestão de Resíduos
O certo é que os biorresíduos abrem um universo de possibilidades como novo produto dentro de um modelo de economia circular. "A recolha destes resíduos tem inúmeras potencialidades, desde logo permitir um maior aproveitamento de outro tipo de resíduos, como as embalagens e o cartão que passam a reunir maior potencialidade de aproveitamento pela diminuição de contaminantes orgânicos", afirma o presidente da Esgra.

Mas "têm outras valências mais evidentes, quer porque podem ser transformados em composto, o que num país com solos pobres em nutrientes é de uma enorme importância. Acresce ainda a possibilidade do seu aproveitamento energético a partir do biogás produzido", salienta Paulo Praça.

Ao serem canalizados para a agricultura e para a produção de energia, a sua valorização poderá atenuar o investimento que poderá ser realizado. "As receitas provenientes da venda do composto, da energia elétrica ou do biometano produzidos, resultante do tratamento de biorresíduos recolhidos seletivamente servirá para mitigar o aumento dos custos do serviço de gestão de resíduos associado à autonomização deste fluxo de resíduos urbanos. Contudo, perspetiva-se que a atividade não será autossuficiente, concorrendo para um custo líquido a acrescer ao custo global da prestação do serviço de gestão de resíduos".

Já Luís Almeida Capão salienta que os biorresíduos recolhidos em sacos verdes no contentor comum permitem a recuperação do investimento em TGR (taxa de gestão de resíduos). "Os restos de comida são altamente valorizáveis e o que estamos a falar é de uma gestão mais racional dos recursos. Em vez de pensar em irmos logo ao bolso dos contribuintes, seja por via direta ou indireta, ou de gerar mais subsidiodependência, devemos pensar em formas de rentabilizar aquilo que fazemos", defende. Salientando o modelo de circularidade para o qual a União Europeia quer migrar, com reutilização de materiais, o presidente da Associação Limpeza Urbana defende que "é inegável que na recolha seletiva de biorresíduos há um potencial de criação de riqueza grande que deve ser usado para viabilizar os próprios sistemas".

Na lógica dos planos para levar o país rumo a uma economia mais circular, "será necessário um investimento na modernização e capacitação das infraestruturas, na valorização e formação dos quadros técnicos, na sensibilização, na comunicação e no envolvimento da população", sublinha, por sua vez, Luísa Salgueiro.

Neste sentido, "o cumprimento dos objetivos e metas preconizados no PERSU 2030 vão obrigar a mais investimento em meios, equipamentos e sensibilização para que seja possível materializar essa estratégia". "A evolução que temos acompanhado é que esse reequilíbrio poderá ser perspetivado na redução da TGR ou na bonificação de cofinanciamentos, certo de que o território nacional assume múltiplas identidades e características e que, naturalmente, os investimentos e custos associados à recolha de biorresíduos serão distintos entre cidades e regiões", explica Luísa Salgueiro.

Assim, com maior ou menor atraso, Portugal está atualmente a preparar-se para um novo modelo de gestão de resíduos orgânicos. Mas de nada serve um sistema preparado se a população não for informada atempadamente do que tem de fazer. A comunicação atempada à população é essencial para que "esta lei não venha a ser mais uma daquelas que vê adiada a sua aplicação por falta de preparação no terreno", destaca Luís Almeida Capão.

Até 31 de dezembro, o cronómetro está a descontar tempo.
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