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Eva Gaspar - Jornalista egaspar@negocios.pt 08 de Janeiro de 2015 às 20:45

Silêncio de morte

Tal como não foram os hereges que acabaram com a Inquisição católica, não será o secularismo europeu que acabará com o terrorismo islâmico.

 

Não há nada que um Estado democrático, sofisticado e atento possa fazer para impedir um fanático alienado de atirar o carro contra uma dezena de pessoas quando tentam atravessar a rua. Já assistir à morte de mais de uma dezena de pessoas na sede de um jornal sob reiterada ameaça e que, por isso mesmo, estava sob protecção policial, é também resultado de uma falha grave do Estado. Ver isso suceder no coração de Paris, tendo a França dos melhores serviços de informação do mundo, é ficar com a sensação de que andaremos inutilmente a fazer coreografias idiotas nos aeroportos. 

 

Talvez tenhamos de estar dispostos a investir ainda mais tempo e mais impostos em segurança. Mas seguramente devemos investir muito mais em perceber, para depois combater, como algumas das mais extraordinárias sociedades europeias geraram tantos filhos radicais dispostos a matar e a morrer para destruir alguns dos valores mais caros ao modo de vida a que chamamos "nosso". 

 

Embora haja, necessariamente, em cada mente terrorista, farto material para o estudo das patologias, o terrorismo islâmico não é assunto para psiquiatras. Há nele cultura, tradição e fé, e há também provavelmente a mais rica, organizada e global estrutura de doutrinação, planeamento e execução de crimes, sem a qual os desvairados nunca dariam o passo para o abismo do terror.

 

É, por isso, inútil imaginar que haja qualquer solução que não passe pelo próprio islamismo. Tal como não foram os hereges que acabaram com a Inquisição católica, não será o secularismo europeu que acabará com o terrorismo islâmico, que é hoje uma ameaça universal, estando o mundo muçulmano na primeira linha. O polícia que foi executado em frente ao Charlie Hebdo era muçulmano; os jornais satíricos (goste ou não do género - eu não, mas neste ponto isso é irrelevante) estarão até menos ameaçados na Europa do que, por exemplo, na Turquia; e há menos de um mês morreram numa escola de Peshawar, no Paquistão, mais crianças do que todas as vítimas dos fundamentalistas em todo o Velho Continente.

 

Não se conclua daí que devamos ficar à espera que a modernização do Islão se dê por geração espontânea. Há que defender sem "mas" a liberdade da pregação islâmica moderada – e aí a proibição de mais mesquitas é, em si mesma, um erro -  e ter ao mesmo tempo muito claro que o triunfo da tolerância depende também da mais obstinada intolerância.

 

Pode parecer um paradoxo, mas é em nome da tolerância – desse valor supremo que é saber conviver e aprender com a diferença – que não se pode tolerar Mulahs a incentivar o ódio e a violência, a formar mentalidades de rappers nos subúrbios de Londres que depois cortam cabeças a quem corajosamente exerce o direito à informação algures no caos da Síria. 

 

É em nome da tolerância que é intolerável confrontarmo-nos tão facilmente na Internet com revistas como a "Inspire" e a sua divisa "Targeting the Populations of Countries that are at War with the Muslims" editada com ultrajante glamour sobre a foto de gente que se move apressada na estação central de Nova Iorque.

 

No fundo, o que não é tolerável é simplesmente a incomunicabilidade –  que nada tem nada a ver com a diferença - que tanto se materializa em burkas que transformam mulheres em vultos, impedidas de dar a cara, quanto na dificuldade, de que nesta semana se queixou Boris Jonhson, "mayor" de Londres, de comunicar em inglês nalgumas zonas da capital britânica.  Nigel Farage, do UKIP, queixa-se do mesmo no serviço nacional de saúde e quer despedir quem não passe no teste de inglês. Pôr os dois no mesmo saco é um erro. Porque é fácil reconhecer que se a língua é poderosíssimo veículo de identidade também o é de integração - apenas 2% da população do Reino Unido não será fluente em inglês, mas é aí que a taxa de emprego é a mais baixa, aquém de 50%.

 

Todas estas preocupações, porque mexem directa e constantemente com os quotidianos de todos nós, não podem ser coutadas exclusivas dos outros radicais que prosperam na Europa, designadamente na extrema-direita. É outro erro, mais comum mais à esquerda, vincular um discurso e uma acção mais musculadas em defesa do nosso modo de vida e da segurança de que precisamos para viver as nossas liberdades a resquícios totalitários ou xenófobos. Rigorosamente ninguém - preto, branco, católico, muçulmano, ateu - é verdadeiramente livre se viver no medo ou em guetos.

 

Em 1989, quando o Vlaams Blok foi o mais votado em Antuérpia com o seu slogan "Eigen volk eerst" (o nosso povo primeiro) os demais partidos uniram-se para impedir que governasse a segunda maior cidade da Bélgica. Anos depois, o partido foi ilegalizado por incitação repetida à discriminação. Renasceu na aparência mais moderada de Vlaams Belang, mas a segregação permanece.

 

Na Suécia, o governo minoritário de centro-esquerda, os Verdes e quatro partidos de centro-direita acabam de assinar um pacto de não-agressão válido até 2022 para travar a cavalgada da extrema-direita.

 

Na hora da verdade, os partidos moderados europeus têm até agora sido capazes de construir "cordões sanitários" para manter os xenófobos no hall de entrada do poder, mesmo que à custa da redução do cardápio de opções oferecido ao eleitorado. 

 

É difícil saber se continuarão a conseguir fazê-lo. Mas as chances de serem, de sermos, bem-sucedidos na preservação da nossa civilização de liberdade seriam seguramente maiores se a vasta maioria muçulmana moderada, que tanta riqueza traz a tanta cidade europeia sombria, se tornasse mais organizada e menos silenciosa, se assumisse um papel mais activo e não meramente reactivo na condenação aos que matam em nome do Islão.

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