Opinião
Direitos adquiridos, deveres acrescidos (para os outros)
Peter Huber é juiz do Tribunal Constitucional alemão. Como a maioria dos seus pares, tem fortes reservas em relação ao percurso percorrido nestes anos de crise e de resgates pela Europa, mas, ao que parece, nem é o caso mais agudo de eurocepticismo em Karlsruhe.
Ainda assim, é sem rodeios que fala do receio de as opções das gerações futuras de alemães sobre o que querem fazer com os seus impostos estarem a ser usurpadas em Bruxelas e em Frankfurt por entidades sem suficiente legitimidade política, em flagrante desprezo pelos princípios basilares das democracias. “Não quero que os meus filhos e netos sejam meros joguetes num jogo em que nada podem decidir”. “A rapidez e a eficácia não são objectivos que possam ser alegados na gestão de crises quando envolvem milhares de milhões de euros, que têm de ser decididos pelos povos”, protesta.
Peter Huber queixa-se ainda do mesmo que muitos juízes do Tribunal Constitucional português. “Há quem nos acuse de pensar que ainda vivemos nos anos 80”, alheios ao euro e à integração das economias europeias.
Mas Peter Huber faz a mesma queixa para concluir exactamente o oposto.
Enquanto por aqui se alega que, não podendo desvalorizar a moeda e incendiar a inflação (que, sorrateiramente, terão roubado tanto ou mais rendimento na crise dos anos 80), não se pode cortar em pensões e salários porque isso significa ceifar “direitos adquiridos”, por lá argumenta-se que a resolução de crises fora das suas fronteiras não lhes pode impor “deveres acrescidos”. Sobretudo quando o contrato de partilha da mesma moeda excluía a possibilidade de Estados financiarem outros Estados.
Peter Huber falava em Berlim, no II Fórum Portugal-Alemanha, na véspera de, em Lisboa, ser divulgado o manifesto dos 70 a reclamar mais um direito: o direito dos portugueses a terem uma dívida mais baixa. Subscrito por muita gente que teve responsabilidade nela (Portugal têm défices excessivos há longas décadas, e são eles o tijolo com que se tem construído o essencial deste gigante muro de dívida), esse direito, defendem, deve ser garantido através de uma reestruturação “no espaço institucional europeu”, mesmo que “provavelmente a contragosto dos responsáveis alemães”.
Esse direito, explicam ainda, deve ser assegurado por juros mais baixos, prazos de amortização mais alargados e pela mutualização do risco de reembolso do montante da dívida que excede os 60% do PIB.
E o que oferecem em troca?
Basicamente, três referências genéricas “a uma sã e rigorosa gestão orçamental no respeito com as normas constitucionais”. E que Constituição? A de hoje que, devido à oposição do PS, não tem inscrita a “regra de ouro” para obrigar Governos a fazerem por norma Orçamentos equilibrados, sem o pendura de sempre, de mais dívida a ser paga por gerações e Governos seguintes?
Sobre este ponto central, o manifesto é deliberadamente ambíguo. Oferece uma mão fechada que pode estar cheia de nada. Sobre muitas outras dimensões, é absolutamente omisso.
O manifesto não diz, por exemplo, que a possibilidade de criar um fundo para mutualizar parte do risco do endividamento excessivo – que é um problema de muitos países da Europa e, aliás, de muitos países do mundo desenvolvido e até emergente - está em cima da mesa desde 2011, e que foi lá posto por um conselho de especialistas independentes que assessora o Governo alemão.
O manifesto também não diz que, estando a proposta a ser reflectida na esfera da Comissão Europeia, exigirá muito provavelmente alterações aos Tratados para ser posta em prática, na medida em que terá de ser precedida da transferência de mais competências e soberania dos Estados para o “centro” – para um Tesouro europeu. Que mesmo contando com os bons ofícios de dois fortes candidatos a presidente da Comissão – o conservador luxemburguês Jean-Claude Juncker e o socialista alemão Martin Schulz, que há muito defendem que alguma coisa tem de ser feita neste sentido - um fundo comum de amortização de dívida só lá para 2020 verá a luz do dia. E isto na hipótese de um processo célere de ratificação – hipótese sempre improvável, e ainda mais se envolver referendos.
O manifesto também não elucida que os empréstimos assegurados pelo fundo permanente de socorro do euro – o Mecanismo Europeu de Estabilidade, do qual a Alemanha é o maior fiador – têm, neste momento, uma previsão de custo de 2,2% e maturidade média de quase 21 anos. Que o essencial dos empréstimos europeus só vai começar a ser reembolsado a partir de 2025 porque a Europa aceitou nestes três anos dilatar por duas vezes os prazos – e há sinais de que pode vir a repetir a dose. Que os “picos” de dívida que temos agora de pagar se devem à que se contraiu antes do resgate, nalguns casos com a promessa de juros monumentais (6,4% por empréstimos a cinco anos, foi o preço da última emissão antes da intervenção da troika).
A dois meses do fim do programa de assistência financeira da troika a Portugal, o manifesto revela, afinal, um problema que ninguém verdadeiramente desconhece: que a dívida pública portuguesa é pesadíssima e que os parceiros do euro devem ajudar mais a aligeirar esse fardo em nome do interesse comum, desde logo da estabilidade do sistema financeiro e dos bancos que continuam carregados de títulos de dívida pública que, desavisadamente, contam para a formação dos rácios de capital como se de activos sem risco se tratassem.
No meio do inoportuno e inconsequente óbvio, acaba por sobressair o preconceito primário em relação à Alemanha e a convicção de que esta geração dos 70 tem uma enorme falta de confiança no país que ajudou a moldar e que, tendo vivido a passar boa parte da factura para o futuro, não consegue conceber outro modo de vida.
Se algum dia o manifesto dos 70 chegar às mãos de Peter Huber, o juiz alemão terá à sua frente uma péssima caricatura dos portugueses, desenhada por portugueses.