Opinião
Vai acabar bem?
Flor, filha de Daniel, sublinhava palavras no jornal. Sublinhava palavras como guerra, crime, pobreza. Flor, 13 anos, deixou de ler jornais. "Porquê?", perguntou o seu pai: "Já sei como acaba" (...) "não acaba bem".
Flor é uma personagem fictícia, criada por David Machado, no livro "Índice Médio de Felicidade". Embalada por esta Flor, fui fazer o mesmo exercício com o jornal "Público" de sexta-feira, 8 de Novembro.
Reduções, cortes, quedas, decréscimo, cortar, reduzir e todas as formas verbais que vão dar ao mesmo ficaram no topo da minha contagem: apareceram 100 vezes. 100! Ao invés, os aumentos e todos os sucedâneos aparecem 46. Se juntarmos as 16 vezes que aparece a palavra crescimento, então teremos 62 derivações do crescer. O desemprego aparece com 27 referências. Já o construir e suas derivadas surgem 17 vezes.
É uma mera contagem de palavras de um jornal, mas é o espelho do nosso dia-a-dia. Os cortes, as reduções vão ganhando aos aumentos, às subidas. Claro que em muitos casos, as reduções, quedas, quebras, diminuições até estavam em situações positivas. E é aqui que entra outra realidade. Hoje é comum lerem-se os títulos ou atacarem-se citações retiradas dos contextos. As redes sociais estão cheias de pedras lançadas sem que se tente perceber a situação ou o contexto ou, ainda, a verdadeira substância das palavras.
São palavras. E as palavras podem ser cruéis. Podem servir para a crítica, mas também podem servir para a construção.
Prosseguindo a leitura do jornal. A seguir surgem as palavras crime/criminalidade com 22 menções; rapto, sequestro, raptado e sequestrado com 21 referências; greve (20 vezes); despesa com 17 nomeações (já a receita é citada seis vezes) e os problemas em 14 vezes. Mas eis que surgem as palavras melhor e investimento em 14 vezes. Os milionários (12) juntam-se à riqueza e ricos (5). Depois surgem as preocupações (10), as lutas (10), a pressão (9) e a morte (9). O nascimento só tem direito a uma citação, tal como a paz. Aqui não há inimigos. Só amigos (5). E neste jornal, pelo menos, o amor e a paixão (9) conseguem superar a guerra (7). E há espaço para coligações, entendimentos, consensos, negociações e afins: 25 vezes.
E agora, o que se faz com esta contagem? Possivelmente nada. Ou então podemos começar por tentar que Flor volte a ler jornais e volte a acreditar que vai acabar bem.
P.S.: - Declaração de interesse: o autor do "Índice Médio de Felicidade", David Machado, é meu primo. Com orgulho. Mas não é o parentesco que lhe "dá" o direito de ser falado neste artigo. O apelido podia ser outro. O autor também. O que "dá" esse direito é a obra, que, já agora, recomendo.
Visto por dentro é um espaço de opinião de jornalistas do Negócios