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12 de Dezembro de 2014 às 19:43

O rei filósofo e o presidente filósofo

Há pouco tempo conheci o presidente irlandês Michael Higgins, com quem partilhei o espaço para um discurso no qual traçou vínculos entre a sua nova "iniciativa de ética" e um livro que escrevi com o meu filho, How Much is Enough? Money and the Good Life. Fiquei impressionado pela sua devoção ao pensamento. De facto, as ideias são uma paixão para o presidente-poeta da Irlanda – e deveriam ser para mais chefes de Estado.

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Há pouco tempo conheci o presidente irlandês Michael Higgins, com quem partilhei o espaço para um discurso no qual traçou vínculos entre a sua nova "iniciativa de ética" e um livro que escrevi com o meu filho, How Much is Enough? Money and the Good Life. Fiquei impressionado pela sua devoção ao pensamento. De facto, as ideias são uma paixão para o presidente-poeta da Irlanda – e deveriam ser para mais chefes de Estado.

 

No passado mês de Maio, ao falar com estudantes de economia da Universidade de Chicago, Higgins disse que estudavam uma disciplina desvirtuada, que perdeu as suas raízes éticas e filosóficas. "As recentes agitações económicas e financeiras", disse, "deixaram em evidência as carências das ferramentas intelectuais da economia ortodoxa e dos seus pressupostos fundamentais em relação à sustentabilidade dos mercados auto-regulados" especialmente "dos mercados financeiros mundiais em grande medida desregulados". Então propôs um "exame crítico de alguns pressupostos centrais nos quais se baseia a economia que é ensinada actualmente nas universidades de todo o mundo".

 

Que outros chefes de Estado seriam capazes de assinalar com tanta precisão as deficiências da economia, com citações não apenas de Adam Smith mas também de Max Weber, Thorstein Veblen e Jürgen Habermas?

 

A experiência académica de Higgins e o seu estatuto de aclamado poeta deram-lhe, sem dúvida, vantagem sobre outros chefes de Estado: há poucos que, como ele, possam estar à altura de pensadores de primeira linha. Mas acima de tudo, Higgins sabe que um líder político deve também ser um líder do pensamento e cultura para o seu país – e o mundo. Esta liderança intelectual deverá ser uma das funções principais de todos os chefes de Estado com funções representativas (não-executivas), uma das suas formas principais de "ganhar o sustento".

 

Claro que o chefe de Estado – seja presidente ou monarca – também tem outros deveres importantes, entre eles actuar como garante da constituição e símbolo da unidade nacional. Além disso, em sistemas de votação proporcional como o de Itália, onde é raro que um único partido político obtenha a maioria dos lugares no Parlamento, o presidente tem normalmente um papel chave na nomeação do primeiro-ministro. O presidente italiano pode também obrigar os deputados a repensarem as suas decisões (autoridade que a monarquia britânica delegou na Câmara dos Lordes).

 

Mas, além disso, os chefes de Estado têm uma ampla margem para actuar como os líderes descritos no Livro do Ecclesiasticus 44:4: "Com o seu conselho e prudência guiaram o povo; doutores do povo, que o instruíram com sábias máximas". Isto é particularmente importante agora que o discurso público nas democracias é cada vez mais prosaico e o trabalho académico está cada vez mais especializado.

 

Embora alguns estudiosos e pensadores estejam aptos para "guiar o povo", é necessário um ambiente propício que os persuada a sair das suas torres de marfim. Um chefe de Estado de mente aberta, culturalmente letrado e orientado por ideias pode ser fundamental para o criar.

 

O ideal é que seja um presidente eleito e não um monarca. De facto, toda a contribuição que um monarca possa fazer, um presidente eleito sem função executivo pode fazer melhor – sobretudo porque é mais difícil que seja prejudicado por escândalos criados por descendentes malcriados ou degradados pela hipocrisia e a servidão inevitáveis das cortes reais.

 

Mais importante, os presidentes eleitos têm muito mais legitimidade do que os monarcas, cuja autoridade depende exclusivamente da tradição e cerimónia. As actuais monarquias, incapazes de dizer ou de fazer qualquer coisa que possa causar a menor controvérsia, estão privadas do poder de acção ou reflexão.

 

Claro que muitas vezes os monarcas – e especialmente os seus cônjuges, herdeiros e familiares – sabem encontrar uma função útil: a protecção da vida selvagem, o desporto, as actividades de beneficência, etc. (Mas não convém que se arrisquem na arquitectura, como aprendeu o príncipe Carlos quando criticou o modernismo.) Os monarcas e as suas cortes ainda podem, até certo ponto, ser líderes em questões artísticas, musicais e de moda, como fizeram no século XVIII. Mas a crescente expectativa de que sejam "normais" e representem o mais possível os hábitos e gostos das suas populações dificulta o exercício desse papel.

 

O mandato dos presidentes eleitos habilita-os a serem mais polémicos, especialmente em áreas do pensamento e cultura que excedem o âmbito da política quotidiana, mas que definem a qualidade do espaço público no qual se desenvolve. Ninguém imagina que um monarca ataque a oligarquia financeira, como Higgins fez no seu discurso em Chicago.

 

Quando em 1936, o rei Eduardo VIII da Grã-Bretanha declarou que "tinha que fazer algo" em relação ao desemprego, foi criticado por exceder as suas funções. Mas, em Maio, Higgins declarou que a sua condição de chefe de Estado o obrigava a "representar as experiências e dificuldades dos irlandeses" nos anos que se seguiram à crise económica.

 

Mas, a vantagem mais importante que têm os presidentes eleitos sobre os monarcas para actuar como catalisadores de um debate público sobre os valores e prioridades das suas sociedades é que, provavelmente, serão pessoas mais capazes. Pela mesma razão, em geral, os sistemas de meritocracia funcionam melhor do que os hereditários.

 

Os monarcas são criados hoje criados para serem pessoas ordinárias, tal como corresponde ao reduzido papel que têm na vida nacional. Mas os países democráticos precisam de símbolos do extraordinário para não se afundarem numa mediocridade permanente.

 

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

Tradução: Raquel Godinho

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