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15 de Setembro de 2016 às 12:00

O papão da dívida pública

Muitas pessoas pensam que, por mais pesados que sejam os impostos, é mais honesto para os governos aumentá-los para pagar os seus gastos do que incorrer em dívidas.

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A maioria das pessoas está mais preocupada com a dívida pública do que com os impostos. "Mas são biliões", protestou recentemente um amigo meu referindo-se à dívida pública do Reino Unido. Ele exagerou um pouco: são 1,7 biliões de libras (cerca de 1,99 biliões de euros). Mas um site apresenta um relógio que mostra a dívida a crescer a um ritmo de 5,170 libras por segundo. Embora a carga tributária seja muito menor, o governo do Reino Unido ainda arrecadou 750 mil milhões de libras em impostos no último ano fiscal. A base tributária também cresce ao segundo, mas nenhum relógio mostra isso.

 

Muitas pessoas pensam que, por mais pesados que sejam os impostos, é mais honesto para os governos aumentá-los para pagar os seus gastos do que incorrer em dívidas. O endividamento atinge-os como uma forma de tributação escondida. "Como é que eles vão pagá-la [a dívida]?", perguntou o meu amigo. "Pensa no encargo para os nossos filhos e netos".

 

Devo dizer que o meu amigo é extremamente velho. O horror da dívida é particularmente vincado para os mais idosos, talvez devido a um sentimento antigo de que não se deve ir ao encontro do criador com um balanço negativo. Gostaria também de acrescentar que o meu amigo é extremamente bem educado e desempenhou um papel proeminente na vida pública. Mas as finanças públicas são um mistério para ele: ele só tinha a sensação de que uma dívida pública na casa dos biliões e a crescer a um ritmo de 5,170 libras por segundo é uma coisa má.  

 

Não se deve atribuir esta percepção à iliteracia financeira. Tem recebido um forte apoio daqueles que, supostamente, são bem versados em finanças públicas, especialmente desde o colapso económico de 2008. A dívida pública do Reino Unido está actualmente em 84% do PIB. Está perigosamente próxima do limiar de 90% identificado pelo economista de Harvard Kenneth Rogoff, a partir do qual o crescimento económico paralisa. As propriedades mágicas desse número nunca foram devidamente reveladas, e os dados que suportaram a conclusão foram questionados, para dizer o mínimo.

 

Mas Rogoff não retirou a sua afirmação, e dá agora uma razão para o seu alarme. Com a dívida do governo dos Estados Unidos a rondar 82% do PIB, o perigo é de uma "subida rápida das taxas de juro". Os custos orçamentais "potencialmente massivos" decorrentes desta mudança exigiriam "ajustamentos significativos nos impostos e na despesa" que, por sua vez, aumentariam o desemprego.

 

Esta é a perna financeira do argumento "crowding out" (evicção ou deslocamento). De acordo com este ponto de vista, quanto maior a dívida nacional, maior o risco de default do governo - e, portanto, maior o custo de financiamento do governo. Isto, por sua vez, irá aumentar o custo dos novos empréstimos do sector privado. (É por isso que Rogoff quer que o governo dos EUA "congele" as taxas actualmente baixas através da emissão de dívida com maturidades muito mais longas para financiar as infraestruturas públicas). Manter taxas de juros baixas para empréstimos bancários privados tem sido um dos principais argumentos para a redução dos défices orçamentais.

 

Mas este argumento - ou conjunto de argumentos (há diferentes vertentes) - é inválido para a austeridade orçamental. Um governo que pode emitir dívida na sua própria moeda pode facilmente manter as taxas de juro baixas. As taxas são delimitadas por preocupações com a inflação, expansão excessiva do sector estatal e independência do banco central; mas, com os nossos níveis relativamente baixos de endividamento (a dívida do Japão ascende a mais de 230% do seu PIB) e a nossa produção e inflação deprimidas, esses limites são bastante distantes no Reino Unido e nos EUA. E como a história confirma, os aumentos constantes da dívida pública de ambos os países desde o colapso têm sido acompanhados por uma queda no custo de financiamento do governo para um nível próximo de zero.

 

A outra perna do argumento para reduzir a dívida pública tem a ver com o "fardo para as gerações futuras". O presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower expressou esse pensamento de forma sucinta no seu discurso do Estado da Nação em 1960: gerar um excedente para pagar a dívida era uma redução necessária na "hipoteca herdada dos nossos filhos". A ideia é que as gerações futuras teriam de reduzir o seu consumo, a fim de pagarem os impostos necessários para eliminar a dívida excessiva: os défices públicos de hoje têm um "efeito de deslocamento" no consumo das próximas gerações. 

 

Embora os governos tenham repetido infinitamente este argumento desde o colapso de 2008 como uma justificativa para o aperto orçamental, o economista A. P. Lerner denunciou a falácia há muitos anos. O ónus da redução do consumo para pagar os gastos do governo é efectivamente suportado pela geração que empresta ao governo o dinheiro em primeiro lugar. Isto é absolutamente claro se o governo simplesmente angaria o dinheiro de que necessita para as suas despesas através de impostos, em vez de o pedir emprestado.

 

Além disso, a ideia de que os gastos adicionais do governo, quer sejam financiados pelos impostos ou dívida, vão necessariamente reduzir o consumo privado no mesmo montante assume que esses gastos extra não resultam em qualquer fluxo de rendimento adicional – por outras palavras, que a economia já está na sua plena capacidade. Não tem sido assim na maioria dos países desde 2008.

 

Perante testemunhos tão fortes – mesmo que falaciosos – que mostram o contrário, quem sou eu para convencer o meu amigo idoso a ignorar o seu intestino quando se trata de pensar sobre a dívida pública?

 

Robert Skidelsky, membro da Câmara dos Lordes britânica, é professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick.

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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