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28 de Maio de 2018 às 14:00

Uma “solução” bilateral para o dilema multilateral dos EUA

No final, qualquer esforço para impor uma solução bilateral a um problema multilateral será um tiro a sair pela culatra, com consequências nefastas para os consumidores americanos.

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A boa notícia é que os Estados Unidos e a China parecem ter-se afastado do precipício de uma guerra comercial. Embora vago em detalhes, um acordo fechado a 19 de Maio desestimula a tensão e compromete-se com novas negociações. A má notícia é que o quadro de negociações é inadequado: um acordo com qualquer país não resolverá os desequilíbrios económicos da América que surgiram num mundo interconectado.

 

Há uma desconexão de longa data entre abordagens bilaterais e multilaterais aos problemas económicos internacionais. Em Maio de 1930, cerca de 1.028 dos principais economistas académicos dos Estados Unidos escreveram uma carta aberta ao presidente dos EUA, Herbert Hoover, instando-o a vetar o projecto de lei Smoot-Hawley que estava em discussão. Hoover ignorou o conselho, e a guerra comercial global que se seguiu fez com que uma depressão comum se tornasse numa depressão "enorme". O presidente Donald Trump tem uma ideia semelhante sobre o que é preciso para "tornar a América grande novamente".

 

Há muito que os políticos favorecem a perspectiva bilateral, porque simplifica a culpa: "resolvem-se" problemas visando um país específico. Pelo contrário, a abordagem multilateral é atractiva para a maioria dos economistas, porque enfatiza as distorções da balança de pagamentos que surgem dos desequilíbrios entre a poupança e o investimento. Esse contraste entre o simples e o complexo é uma razão óbvia e importante pela qual os economistas costumam perder debates públicos. A ciência sombria nunca foi conhecida pela clareza.

 

É precisamente esse o caso do debate EUA-China. A China é um alvo político fácil. Afinal, foi responsável por 46% do colossal défice comercial de bens de 800 mil milhões de dólares em 2017. Além disso, a China foi acusada de flagrantes violações das regras internacionais, desde alegações de manipulação de moeda e dumping subsidiado pelo Estado até ataques cibernéticos e transferência forçada de tecnologia.

 

A China também perdeu a batalha na arena da opinião pública - castigada por políticos ocidentais, alguns académicos de alto nível e outros por não ter conseguido cumprir o grande acordo firmado em 2001, quando o país foi admitido na Organização Mundial do Comércio. Um artigo recente publicado na Foreign Affairs por dois funcionários do governo Obama diz tudo: "A ordem internacional liberal não conseguiu atrair ou vincular a China de forma tão poderosa como era esperado". Tal como acontece com a Coreia do Norte, Síria e Irão, a paciência estratégica deu lugar à impaciência, com a administração nacionalista de Trump a liderar as acusações contra a China.

 

O contra-argumento de economistas com foco multilateral como eu soa vazio neste clima. A ligação entre o défice comercial e o enorme défice de poupança interna dos Estados Unidos – apenas 1,3% do rendimento nacional no quarto trimestre de 2017 - conta pouco na arena da opinião pública. Da mesma forma, não adianta enfatizarmos que a China é apenas uma grande parte de um problema multilateral muito maior: os EUA tiveram défices comerciais bilaterais de mercadorias com 102 países em 2017. Também não importa dizermos que corrigir as distorções da cadeia de fornecimento - causadas por inputs de outros países que entram nas plataformas de montagem chinesas - reduziria o desequilíbrio comercial bilateral entre os EUA e a China em 35-40%.

 

Por mais erróneos que sejam, os argumentos políticos têm muita adesão nos EUA, onde há uma enorme pressão para aliviar a angústia da classe média. Segundo esses argumentos, défices comerciais levam a perdas de emprego e compressão salarial. E com o défice comercial a alcançar 4,2% do PIB em 2017, essas pressões só se intensificaram na actual recuperação económica. Como resultado, ter a China como alvo é muito atractivo do ponto de vista político.

 

Então, o que pode ser feito do acordo de 19 de Maio? Além de um cessar-fogo nas tarifas, existem poucos benefícios reais. Os negociadores dos EUA estão fixados em reduções direccionadas de cerca de 200 mil milhões de dólares no desequilíbrio comercial bilateral ao longo de um período de dois anos. Dada a extensão do problema multilateral dos EUA, este é um objectivo sem grande sentido, especialmente à luz dos cortes de impostos massivos e inoportunos e dos aumentos dos gastos federais que os EUA promulgaram nos últimos seis meses.

 

Na verdade, com os défices orçamentais a aumentarem, o défice de poupança da América só vai crescer nos próximos anos. Isso aponta para crescentes défices da balança de pagamentos e défices comerciais multilaterais, que são impossíveis de resolver através de acções bilaterais direccionadas a um único país.

 

Os negociadores chineses são mais circunspectos, resistindo às metas numéricas, mas comprometendo-se com o objectivo conjunto de "medidas efectivas para reduzir substancialmente" o desequilíbrio bilateral com os EUA. A promessa vaga da China de comprar mais produtos agrícolas e energéticos fabricados nos Estados Unidos segue a linha da abordagem de "lista de compras" das suas missões comerciais anteriores aos EUA. Infelizmente, a mentalidade de uma China faminta por acordos reforça a narrativa dos EUA de que a China é culpada das acusações.

 

Mesmo se as estrelas estivessem totalmente alinhadas e os EUA não estivessem a enfrentar restrições à poupança, não é credível procurar uma solução bilateral para o problema multilateral dos EUA. Desde 2000, a maior redução anual no desequilíbrio comercial EUA-China foi de 41 mil milhões de dólares, e isso ocorreu em 2009, durante as profundezas da Grande Recessão. O objectivo de obter reduções anuais consecutivas, com mais do dobro dessa dimensão, é pura fantasia.

No final, qualquer esforço para impor uma solução bilateral a um problema multilateral será um tiro a sair pela culatra, com consequências nefastas para os consumidores americanos. Sem resolver o défice de poupança interna, uma solução bilateral simplesmente transfere o défice de uma economia para outras.

 

E aí é que está o problema. A China é o fornecedor de bens importados de baixo custo da América. O acordo de Trump mudaria a parte chinesa do desequilíbrio multilateral dos Estados Unidos para importações de maior custo de outros países - o equivalente funcional a um aumento de impostos sobre as famílias americanas. Como o fantasma de Hoover poderia perguntar, o que há de bom nisso?

Stephen S. Roach, membro da Universidade de Yale e antigo chairman do Morgan Stanley Asia, é o autor de Unbalanced: The Codependency of America and China.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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