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19 de Novembro de 2015 às 20:30

O mundo de Helmut Schmidt

A Alemanha perdeu um dos seus gigantes com a morte do antigo Chanceler Helmut Schmidt, com uns incríveis 96 anos. Schmidt foi ministro da Defesa entre 1969 e 1972, ministro das Finanças de 1972 a 1974, e Chanceler Federal de 1974 a 1982. Os tempos que correm podem parecer particularmente tumultuosos, mas os anos em que Schmidt governou a Alemanha foram tudo menos calmos.

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Foi a era da Ostpolitik (na língua alemã significa política do leste) e do desanuviamento, da primeira crise global do petróleo, da recessão económica, da estagflação, e do regresso ao desemprego em massa na Europa. A sua geração enfrentou os flagelos do terrorismo doméstico e testemunhou a revolução Iraniana, a invasão soviética ao Afeganistão e o surgimento do Solidariedade na Polónia.


Schmidt é recordado como um pragmático, mas acima de tudo foi um brilhante gestor de crises. Provou o seu bom senso e capacidade de liderança desde cedo, quando, na qualidade de ministro do Interior no Senado da cidade-estado de Hamburgo, foi confrontado com a grande cheia de 1962 que devastou a cidade.

Schmidt reforçou a sua imagem de pragmático manifestando o seu profundo cepticismo aos grandes desígnios e visões a longo prazo, ainda que sem nunca renunciar à convicção fundamental que existe uma base moral para os objectivos políticos. Por essa razão não é surpresa nenhuma que Karl Popper, com o seu pragmatismo, e no entanto, uma abordagem assente em valores, tenha sido o seu filósofo favorito.


Mas a visão que Schmidt tinha do mundo foi influenciada por outros factores: como filho da maior cidade portuária da Alemanha, foi um internacionalista empenhado, genuinamente interessado no que se passava além fronteiras. Enquanto estudioso de Popper, e portador de memórias e das cicatrizes da catástrofe dos anos do nazismo, teve plena consciência, ao longo da sua vida, das forças e das fraquezas das nossas sociedades abertas.


Schmidt compreendeu que um político pragmático tem de lidar com os acontecimentos à medida que eles se desenrolam, gerindo-os o mais sabiamente possível. E percebeu instintivamente que os acontecimentos quotidianos eram moldados por forças poderosas: a competição estratégica entre o Leste e o Ocidente, o envolvimento do sistema financeiro internacional na era da interdependência global, e as consequências da descolonização. Foi um dos primeiros na Alemanha a reparar na ascensão da China e a contar com as implicações do regresso da Ásia a um papel de protagonismo no palco mundial.

 

Para Schmidt, a análise aprofundada era um pré-requisito para toda a acção política. Abominava particularmente a abordagem emocional à política externa. Não tolerava imbecis por prazer, e, invariavelmente, actuava segundo as suas convicções.

Juntamente com o presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, impulsionou a criação do Grupo dos Sete para coordenar políticas económicas internacionais, e desempenhou um papel de liderança na primeira cimeira do G7, em Rambouillet em 1975. Nesse mesmo ano sentou-se ao lado do líder da Alemanha Oriental, Erich Honecker, em Helsínquia, enquanto assinavam a "acta final" da cimeira da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa – um importante passo em frente para o desanuviamento político e para a abertura das sociedades fechadas da Rússia e dos países do Pacto de Varsóvia.

O relacionamento de Schmidt com o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, foi difícil, tal como foi muitas vezes relatado. No entanto foi sempre um firme defensor de uma estreita parceria transatlântica, que via como indispensável para a política externa e para a segurança da Alemanha. De facto, a sua iniciativa de rebater a implantação dos mísseis soviéticos SS-20, mísseis nucleares de médio alcance, uma ideia apresentada num importante discurso em 1977, foi motivado sobretudo por preocupações sobre o relacionamento da Europa e o seu aliado, os Estados Unidos.

O compromisso de princípio de Schmidt em relação à chamada "decisão de via dupla" da NATO em 1979, em que mísseis nucleares de médio alcance vieram a ser eventualmente eliminados da Europa, foi visto com desagrado por muitos do seu próprio partido. Mas a sua leitura atenta e ponderada da reorientação do panorama estratégico revelou-se acertada.


Finalmente, Schmidt foi um verdadeiro europeu. Testemunhou como o cataclismo do nacionalismo extremo devastou a Alemanha. Manteve-se céptico com a noção dos progressos irreversíveis. A mudança para melhor só pode emergir de iniciativas concretas e não de discursos solenes.


A integração europeia não se fez por decreto, teve de ser criada por instituições e políticas concretas. Assim, Schmidt e Giscard criaram o Conselho Europeu (composto pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados-membros) que tem hoje um papel preponderante no contexto institucional da União Europeia. Impulsionaram a ideia de uma integração monetária, que se materializou na geração seguinte. Justos incorporaram o compromisso franco-alemão de uma Europa unificada e pacífica, capaz de exercer a sua influência globalmente - apenas se e quando essa ingluência foi exercida com unidade e com um objectivo.


Schmidt manteve-se, décadas após deixar a política activa, um mentor para os alemães. Crises internacionais, ordem global e o futuro da Europa permaneceram as suas preocupações fundamentais, que entendia fazerem parte da função e um dever de responsabilidade para o seu próprio país.


O seu pensamento tinha um forte alicerce normativo, mas a sua percepção fina do mundo levou-o a uma abordagem na política externa com um sentido de humildade e paciência estratégica. É esta rara combinação de perseverança e moralidade o legado que nos deixa como pensador praticante da política externa. Faríamos bem em manter as suas prioridades e os seus princípios bem presentes no nosso espírito uma vez que não o teremos mais a recordar-nos dessa necessidade.

 

Frank-Walter Steinmeier é o ministro dos negócios estrangeiros da Alemanha

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org

Tradução: Rosa Castelo

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