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28 de Setembro de 2014 às 20:41

O fantasma de Hirohito

A conclusão dos 61 volumes sobre a vida do imperador Hirohito (1901-1989), pela Agência da Casa Imperial do Japão, tem gerado muito interesse e atenção no país.

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Recentemente, a obra foi mostrada ao público, de forma limitada, e já há planos para publicá-la ao longo dos próximos cinco anos. Mas já é evidente que estes registos reflectem, inadvertidamente, a incapacidade contínua do Japão de lidar com algumas questões fundamentais sobre o seu passado.

 

Tendo demorado um quarto de século a compilar, o projecto contou com cerca de 40 novas fontes, principalmente o diário e notas de Saburo Hyakutake, um almirante que prestou serviços na corte de 1936 a 1944. Apesar de reconhecerem a enorme dimensão da tarefa, os especialistas parecem concordar que a obra não oferece conclusões extraordinárias nem interpretações inovadoras sobre os numerosos e cambiantes papéis desempenhados por Hirohito no período mais tumultuoso da história recente do Japão.

 

Talvez não seja de estranhar, vindo da equipa oficial de editores de uma instituição imperial conservadora. A obra leva pra outra dimensão a ideia de que a tarefa do historiador é, tal como descreveu Leopold von Ranke no século XIX, "mostrar o que realmente aconteceu". Diz-se ser um excelente crónica do dia-a-dia na corte, que revela, por exemplo, que o imperador celebrava o Natal como uma criança, que foi sujeito a uma intervenção cirúrgica ao nariz na sua juventude, com quem e quantas vezes se reunia.

 

Para ser justo, essas pérolas podem ser interessantes e úteis. Mas a nova obra não explica nem analisa acontecimentos decisivos do reinado de Hirohito. Os leitores ficarão desapontados se quiserem saber mais sobre a participação do Japão na Guerra do Pacífico, a sua derrota, a ocupação dos Aliados (em particular, a relação de Hirohito com o general Douglas MacArthur), e a posterior relutância de Hirohito em visitar o santuário de Yasukuni, onde são homenageados os mortos na guerra imperial do Japão, incluindo os maiores criminosos de guerra.

 

O que já se sabe sobre Hirohito é apenas um esboço. Que ele era um homem tragicamente em conflito não é notícia. Como jovem soberano (foi regente imperial aos 20 anos; imperador aos 25), teve que assumir papéis contraditórios: pater familias (expressão, em latim, que significa "pai de família") divino do Estado japonês e comandante supremo das Forças Armadas Imperiais, que colonizaram os vizinhos asiáticos do Japão. Não se poder dizer que foi o homem mais valente ou decisivo, uma vez que não foi capaz de resistir ao crescente militarismo. Mas dizer que era impotente (e, portanto, inocente) ou que não fez nada para se opor também não seria correcto.

 

O conflito entre os papéis divino e secular de Hirohito tornou-se mais agudo no outono de 1941, quando os líderes do Japão debateram se iriam para a guerra com os Estados Unidos e os seus aliados. A 6 de Setembro, foi convocada uma conferência imperial para aprovar um calendário de mobilização para a guerra, no caso de um colapso nas negociações diplomáticas entre os Estados Unidos e o Japão. Como aconteceu em todas as conferências imperiais, esperava-se que Hirohito permanecesse em silêncio e aprovasse uma política que já estava decidida.

 

No entanto, rompendo com o protocolo, Hirohito pediu cautela para que não se abandonasse a diplomacia demasiado cedo e, em seguida, recitou o poema do seu avô, o Imperador Meiji, do início da guerra entre a Rússia e o Japão, em 1904: "Além de todos os quatro mares, todos são irmãos e irmãs / Então, porquê, oh porquê, estes ventos e ondas?". Desta forma, Hirohito poderá ter tentado expressar a sua opinião de que o Japão devia evitar uma guerra com os Estados Unidos, especialmente tendo em conta que o país estava a travar uma luta selvagem e infrutífera com a China há mais de quatro anos.

 

Mas, qualquer que fosse a verdadeira intenção de Hirohito (que não podemos saber ao certo), a verdade é que aceitou a mobilização para a guerra. E, ainda que a obra oficial descreva com algum detalhe este episódio, não dá novas luzes sobre a forma como Hirohito encarou a sua própria acção.

 

Assim como vacilou na decisão de ir ou não para a guerra com os Estados Unidos, Hirohito foi ambivalente em relação à forma de acabar com ela. Os novos registos relatam que Hirohito disse ao seu assessor mais próximo, Privy Seal Koichi Kido, a 26 de Setembro de 1944: "Se pudéssemos chegar a uma situação de paz sem a questão do desarmamento e da responsabilidade de guerra, eu não me importaria de perder os nossos territórios conquistados". Esta é, supostamente, a primeira indicação sobre o desejo de Hirohito de acabar com a guerra.

 

Mas, independentemente do seu verdadeiro desejo, as suas ações subsequentes não foram - mais uma vez - de um homem que tenta, activamente, encontrar um caminho para a paz. Durante meses, disse a si mesmo e aos outros que primeiro "o Japão devia conquistar outro brilhante ganho militar" sobre os Estados Unidos, para ter capacidade diplomática para negociar um acordo pós-guerra. Escusado será dizer que muitas vidas se perderam durante esses meses de indecisão.

 

Na verdade, a própria existência da nação japonesa estava em perigo, na medida em que a maioria das cidades foi bombardeada, Okinawa foi invadida, e Hiroshima e Nagasaki foram atingidas com bombas atómicas. No final, o Japão ficou desarmado, foram realizados julgamentos pós-guerra e a maioria das conquistas imperiais do país foram invertidas. E, ainda assim, Hirohito conseguiu fugir à responsabilidade numa guerra que foi travada, tão evidentemente, em seu nome. Em plena devastação do pós-guerra, ele tornou-se um símbolo de paz.

 

A lição mais importante desta nova obra pode ser bem diferente daquela que os oficias pretendiam. A notória incapacidade colectiva do Japão para abordar o seu passado está intimamente relacionada com a sua incapacidade de compreender este imperador.

 

Certo é que a nova obra faz um uso selectivo das fontes primárias, sendo que muito poucas foram completamente tornadas públicas. É possível que surjam mais revelações no futuro. Mas, por enquanto, Hirohito continua a ser uma personagem insondável e isolada que desafia entendimentos comuns - em detrimento, infelizmente, de uma melhor compreensão do que "realmente aconteceu".  

 

Eri Hotta é o autor de "Japan 1941: Countdown to Infamy".

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

 

Tradução: Rita Faria

 

 

 

 

 

 

 

 

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