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02 de Julho de 2018 às 14:00

O nacionalismo vai falhar

O oposto do nacionalismo populista não é o elitismo globalista; é o realismo económico. E no final, a realidade vai ganhar.

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Nacionalismo versus globalismo, e não populismo versus elitismo: parece ser o conflito político que define esta década. Para onde quer que olhemos - Estados Unidos, Itália, Alemanha ou Reino Unido, já para não falar na China, Rússia e Índia – o crescimento do sentimento nacional tornou-se a principal força motriz dos eventos políticos.

 

Pelo contrário, a suposta rebelião das "pessoas comuns" contra as elites não tem sido muito evidente. Bilionários tomaram conta da política dos EUA com o presidente Donald Trump; professores não eleitos dirigem o governo "populista" de Itália; e em todo o mundo, reduziram-se os impostos sobre os rendimentos cada vez maiores de financeiros, tecnólogos e gestores de empresas. Enquanto isso, os trabalhadores comuns resignaram-se à realidade de que habitação, educação e até mesmo assistência médica de alta qualidade estão irremediavelmente fora do seu alcance.

 

O domínio do nacionalismo sobre o igualitarismo é particularmente surpreendente em Itália e no Reino Unido, dois países que já foram conhecidos pelo seu sentido fleumático de identidade nacional. No Reino Unido quase não se vêem bandeiras, nem mesmo nos edifícios do governo, e até ao referendo sobre o Brexit as pessoas estavam tão relaxadas em relação à sua nacionalidade que nem se incomodavam em concordar com o nome do país: Reino Unido, Grã-Bretanha, ou Inglaterra, País de Gales e Escócia.

 

Os italianos eram ainda menos nacionalistas. Desde a fundação da União Europeia, os italianos têm sido os maiores proponentes do federalismo, com sondagens a mostrarem que, até há pouco tempo, os eleitores tinham mais confiança nos líderes da UE em Bruxelas do que no seu próprio governo em Roma. Os italianos são apaixonados pela sua cultura, história, gastronomia e futebol, mas o seu patriotismo tem sido direccionado sobretudo para regiões e cidades, não para o estado-nação. Preferem ser governados a partir de Bruxelas do que a partir de Roma.

 

O partido de extrema-direita Liga, um dos membros do governo de coligação de Itália, ainda se chamava Liga do Norte até este ano. Um de seus slogans favoritos era "Garibaldi não uniu Itália; dividiu África", e a sua principal luta política era a abolição do país. Em vez disso, o partido exigiu a criação de um novo país chamado Padania, que separaria as prósperas regiões do norte da corrupção e da pobreza de Roma e das outras regiões do sul.

 

O que explica, então, o súbito domínio do nacionalismo? Não há muito de positivamente patriótico no novo nacionalismo em Itália, no Reino Unido ou mesmo nos EUA. Em vez disso, o surgimento do sentimento nacional parece, em grande medida, um fenómeno xenófobo, como definido pelo sociólogo checo-americano Karl Deutsch: "Uma nação é um grupo de pessoas ligadas por um erro comum sobre os seus ancestrais e uma antipatia comum pelos seus vizinhos". Tempos difíceis - salários baixos, desigualdade, privação regional e austeridade pós-crise - provocam uma procura por bodes expiatórios e os estrangeiros são sempre um alvo tentador.

 

Não há nada de patriótico na beligerância de Trump contra os imigrantes mexicanos e as importações canadianas, ou nas políticas nativistas do novo governo italiano, ou na declaração mais famosa de Theresa May depois de se ter tornado primeira-ministra do Reino Unido: "Se acreditamos que somos um cidadão do mundo, somos um cidadão de sítio nenhum. Não entendemos o que significa cidadania".

 

Agora, algumas boas notícias para aqueles que ainda se orgulham de ser "cidadãos do mundo": o esforço xenófobo de culpar os estrangeiros pelas dificuldades económicas está condenado ao fracasso.

 

Consideremos o esforço pós-crise para desviar a raiva popular em relação ao colapso da economia fundamentalista de mercado para os "banqueiros gananciosos". Isso acabou por fracassar, em parte porque os banqueiros têm enormes recursos para se defender, o que normalmente não acontece com os estrangeiros geralmente. Mas culpar os banqueiros não foi suficiente para acalmar a ira pública sobretudo porque o ataque à "finança" não contribuiu para aumentar salários, diminuir a desigualdade ou reverter a negligência social. O mesmo acontecerá com os actuais ataques à influência estrangeira, seja por meio da imigração ou do comércio.

 

O Reino Unido, por exemplo, está gradualmente a acordar para o facto de as questões europeias não terem nada a ver com as queixas políticas genuínas que motivaram uma grande parte dos votos a favor da saída da UE. Em vez disso, as negociações do Brexit vão agora dominar e distrair a política britânica durante muitos anos, ou mesmo décadas. E o confronto nacionalista do Reino Unido com o resto da Europa dará aos políticos de todas as partes desculpas infinitas para não melhorar a vida quotidiana.

 

Nos próximos meses ou anos, os eleitores dos EUA e de Itália aprenderão a mesma lição. Também aí, o bode expiatório das influências estrangeiras, seja através do comércio ou da imigração, não fará nada para elevar os padrões de vida ou resolver as verdadeiras origens do descontentamento político.

 

Itália tem queixas legítimas contra a UE: políticas hipócritas e injustas em matéria de asilo e salvamentos marítimos, regras orçamentais autodestrutivas e políticas financeiras economicamente analfabetas. Mas o novo governo também está a explorar o aumento do sentimento nacionalista para atacar reformas que nada têm a ver com a Europa e que são vitais para o sucesso económico de Itália.

 

Sucessivos governos italianos desde a crise financeira lançaram gradualmente as bases para as reformas das pensões, do mercado de trabalho e do sector bancário. Essas mudanças criaram condições para a recuperação económica, que começou no ano passado, após uma década de recessão; mas elas foram politicamente impopulares e agora estão a ser denunciadas como símbolos da opressão estrangeira elitista. Se o novo governo deixar de lado os três projectos de reforma, os italianos também podem deixar de lado a esperança da recuperação económica, talvez por mais uma década.

Os EUA também vão perceber que atacar interesses estrangeiros não é uma panaceia e pode piorar as dificuldades. Trump acredita que as suas medidas contra as importações da China, Alemanha e Canadá vão prejudicar esses parceiros comerciais e criar mais empregos no país. Isso podia ser verdade quando a economia dos EUA estava a registar um crescimento fraco e deflação. Mas num mundo de forte procura e subida da inflação, os exportadores alemães e chineses encontrarão novos mercados para os seus produtos, enquanto os fabricantes americanos terão dificuldades para substituir fornecedores estrangeiros. A BMW e a Huawei ficarão bem, enquanto as tarifas actuarão como um imposto sobre os consumidores americanos, através de preços mais altos, e sobre os trabalhadores, empresas e proprietários de imóveis, através do aumento das taxas de juro.

 

O oposto do nacionalismo populista não é o elitismo globalista; é o realismo económico. E no final, a realidade vai ganhar.

 

Anatole Kaletsky é economista-chefe e co-chairman da Gavekal Dragonomics e o autor de Capitalism 4.0, The Birth of a New Economy.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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