Opinião
O lado mau da Uber
No que diz respeito à Uber, pode não ser ainda demasiado tarde, embora a empresa tenha pela frente um caminho longo e difícil. A companhia precisa de uma mudança de raiz, acompanhada por um esforço genuíno e concertado para reconstruir a confiança com os clientes, condutores, parceiros e legisladores.
Os membros do conselho de administração e investidores da Uber, aplicação móvel de transporte privado, receberam recentemente uma onda de elogios por terem forçado o CEO, Travis Kalanick, a demitir-se. Mas não merecem esses elogios. Pelo contrário. Apesar de ser necessária a saída de Kalanick, esta decisão chega tarde – e foi atrasada pelos motivos errados.
Fundada em São Francisco, em 2009, como "UberCab", a Uber cresceu a uma velocidade surpreendente de uma start-up inovadora para um colosso global de 68 mil milhões de dólares. Com a ajuda de múltiplas rondas de financiamento, obtidas junto de grandes investidores, incluindo o fundador da Amazon, Jeff Bezos, e o Goldman Sachs, a Uber surgiu como um grande disruptor para o sector, operando em 570 cidades por todo o mundo, em menos de uma década.
Mas a rápida ascensão da empresa foi acompanhada por um fluxo constante de revelações de comportamento dúbio, desde violações à privacidade dos clientes a enganar reguladores dos governos locais para maltratar os condutores. Em 2011, na festa de lançamento em Chicago, os convidados foram entretidos como o sistema "God View" da empresa, o que lhes permitiu ver onde estavam todos os condutores, mas representou uma clara violação da privacidade. Mas, pelo menos, esta demonstração manteve as pessoas no anonimato.
No mesmo evento, a demonstração seguinte não o fez: mostrou em tempo real a localização e os movimentos de 30 pessoas citadas em carros da Uber, em Nova Iorque. Foi um abuso de confiança impressionante e incrivelmente casual. Ainda assim, a empresa apenas enfrentou repercussões insignificantes: depois de algumas notícias negativas, foi um regresso ao business as usual.
Em 2014, um executivo da Uber usou o sistema "God View" para seguir a localização de uma jornalista sem a sua autorização. Outro executivo notou que poderia descobrir podres de um jornalista que criticou a empresa. Novamente, e depois de uma enxurrada de notícias, a Uber continuou a sua marcha sem mudanças e de forma irredutível. Os seus investidores estavam silenciosos.
Nesse mesmo ano, uma mulher na Índia foi violada pelo seu condutor. A Uber falhou por não ter realizado uma verificação apropriada dos antecedentes do condutor. E depois a empresa voltou a permitir a violação da mulher ao obter e distribuir internamente os seus registos médicos.
Estes eventos ilustram um padrão e uma atitude. Desde o início que a Uber tem tentado, por várias vezes, que os legisladores das ferrovias ignorem a regulação de segurança e as regras. Mais recentemente, foi revelado que a Uber pode estar a rastrear e a caracterizar condutores individuais, como parte do chamado programa "Hell" que tem por objectivo determinar, entre outras coisas, a concorrência dos condutores, incluindo se os seus condutores estão a trabalhar também para a concorrência.
Kalanick, que declarou em 2012 "gosto de chatear as pessoas", foi o responsável mais directo por estas decisões. E os artigos que recentemente têm sido publicados sobre a Uber têm-no apresentado como a imagem da liderança que correu mal. Mas Kalanick não era Übermensch, livre das regras aplicadas aos meros mortais. Ele não poderia ter continuado neste caminho destrutivo se os membros do conselho de administração e os investidores – famintos de lucros e fartos de desculpas – não tivessem permitido a misoginia, desrespeito pela ética e que fracos julgamentos se interligassem com o tecido empresarial.
Até recentemente, nem a administração da Uber nem os seus investidores trataram as atitudes de Kalanick em relação à privacidade, aos direitos dos trabalhadores e das mulheres, como um assunto sério, muito menos como ofensas. Eles estavam muito ocupados a aderirem – e mesmo a encorajarem – Kalanick, que foi descrito frequentemente em termos positivos, usando termos como "arrojado" e "disruptivo". De cada vez que um deslize ético não dava em nada, Kalanick – e por extensão a empresa – sentia que a sua impunidade aumentava, permitindo-lhe, e a outros, continuar a empurrar os limites da ética empresarial e da decência humana.
Mesmo agora que a Uber foi obrigada a enfrentar os seus fracassos, há dúvidas quanto ao seu compromisso para mudar. Sim, Kalanick saiu. E a administração da Uber contratou o antigo Procurador-geral, Eric Holder, para avaliar os problemas da empresa. Será que as recomendações de Holder – mais de 40 no total – vão ser implementadas?
Durante uma reunião da empresa, que decorreu no dia em que foi divulgado o relatório de Holder, David Bonderman, membro do conselho de administração da Uber, equiparou a entrada de mais mulheres para a administração como "mais conversa". Para uma empresa que enfrenta acusações de assédio sexual, este comentário é mais do que mau gosto; mostra uma terrível falha em compreender a gravidade da situação. A boa notícia é que Bonderman apresentou a sua demissão pouco depois deste encontro, o que sugere que a liderança da empresa pode estar finalmente pronta para arrumar a casa.
A experiência da Uber deve servir como uma lição para as administrações e os investidores muito para além daqueles que estão em Silicon Valley. A inovação e a disrupção não são o problema – longe disso. Mas a inovação e a disrupção têm de estar ligadas a um sentimento de responsabilidade e a uma governação das empresas que assegure responsabilidades.
Para membros dos conselhos de administração, isto significa reconhecer a importância de uma mão firme, começando na fase de start-up. Para os investidores, isto significa olhar para além do retorno de curto prazo, evitando os danos que podem provocar na saúde e no bem-estar da empresa a longo prazo, que podem ser o resultado de um relacionamento com os clientes, fornecedores, empregados e comunidades em que estão presentes inapropriada. Uma empresa que permite que o desrespeito pela ética se torne um risco paga um preço excessivo – como os investidores.
No que diz respeito à própria Uber, pode não ser ainda demasiado tarde, embora a empresa tenha pela frente um caminho longo e difícil. A companhia precisa de uma mudança de raiz, acompanhada por um esforço genuíno e concertado para reconstruir a confiança com os clientes, condutores, parceiros e legisladores. Só depois disso, pode seguir em frente não apenas em relação aos processos que enfrenta, mas também em relação à falta de confiança do público, que pode provocar danos irreparáveis no seu desempenho futuro.
Se os líderes da Uber se comprometerem completamente com tal transformação, podem alcançar uma das grandes reviravoltas da nossa história. Se não se comprometerem com esta transformação, a Uber vai-se tornar num alvo para ser comprada ou, pior, uma empresa zombie, incapaz de concorrer com competidores que aprenderam com ela o que não fazer.
Lucy P. Marcus é CEO da Marcus Venture Consulting.
Copyright: Project Syndicate, 2017.
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Tradução: Ana Laranjeiro