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Vamos falar sobre política

É da responsabilidade de todos nós – membros do conselho de administração, accionistas, funcionários e consumidores – obrigar as empresas a olhar para além dos lucros no curto prazo e cumprir com a sua responsabilidade mais alargada. Não podemos simplesmente esperar que aconteça o melhor.

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Ninguém quer discutir política. Quando dou uma palestra ou a minha escrita toca na política, pedem-me frequentemente para evitar o tópico e para me focar apenas no ângulo empresarial. Dada a combinação de fragilidade, frustração e cansaço geral que sinto em relação às notícias, o pedido é compreensível. Mas é impossível concordar com ele.

 

Num mundo em que uma semana pode parecer um mês, é difícil entender em que medida Donald Trump desestabilizou os Estados Unidos e o mundo. Em apenas um ano como presidente, Trump ridicularizou infantilmente outros líderes mundiais, publicando, por exemplo, tweets em que diz que o seu "botão nuclear" é "muito maior e mais poderoso" do que o do líder norte-coreano Kim Jong-un. Trump desafiou também alianças de longa data, incluindo a NATO, ao criticar regulações e ao retirar os EUA de acordos internacionais.

 

E os golpes continuam a chegar. Na semana passada, Trump insultou de forma grosseira os cidadãos do Haiti, El Salvador e estados africanos, alegadamente lamentando que os Estados Unidos tenham de aceitar imigrantes destes "países de merda". Não devia ser uma surpresa que a taxa de aprovação de Trump seja a mais baixa entre qualquer presidente nesta fase do mandato, apesar do forte crescimento económico, das subidas dos mercados bolsistas e do baixo desemprego.

 

Não é apenas a política norte-americana que se tornou incontornável. O referendo sobre o Brexit, em Junho de 2016, atirou o Reino Unido e a União Europeia para uma espiral, obrigando as empresas a adivinhar o que é que vem a seguir – e, em muitos casos, incitando-os a mudarem as suas operações para outros países.

 

Entretanto, os regimes autocráticos têm estado a crescer, desde a Turquia – outrora o farol da democracia do mundo muçulmano – até à Polónia – outrora o país predilecto da Europa do pós-comunismo. O presidente chinês, Xi Jinping, consagrou-se como o líder mais poderoso desde Mao Zedong, reprimindo qualquer aparência de dissidência. E o presidente russo, Vladimir Putin, tem os seus dedos num número crescente de questões geopolíticas – incluindo, sugere o número crescente de provas, nos Estados Unidos.

 

Se aprendi alguma coisa no ano passado, é que a política e os negócios estão inextricavelmente ligados. Os negócios moldam directamente a política, com as empresas a colocarem directamente dinheiro nas campanhas numa tentativa de fazerem avançar os seus interesses e, indirectamente, com inovações que superam os limites da regulação.

 

Da mesma forma, os desenvolvimentos políticos têm grande impacto nos negócios. Não se pode avaliar os mercados financeiros sem considerar os riscos políticos e a política monetária, ou a estratégia do retalho sem avaliar a confiança dos consumidores, que é influenciada pelo ambiente político. (Depois das eleições gerais do último verão no Reino Unido, a confiança dos consumidores afundou para o nível mais baixo desde o referendo do Brexit). As políticas de imigração são fundamentais para os mercados laborais. As estratégias de investimento público, em particular no que diz respeito às melhorias e modernização das infra-estruturas, são parte integrante da forma como os empresários planeiam os seus próprios investimentos. A lista continua.

Cada decisão tomada pelos nossos governos tem um impacto directo e quantificável nas nossas empresas e nas nossas vidas enquanto consumidores. A crença que podemos simplesmente evitar a política, que as más notícias ou que uma liderança irresponsável vai simplesmente passar, é inadmissível. De facto, a única opção real é fazer o oposto: temos de trabalhar para ter um melhor entendimento dos temas em questão, muitos dos quais são complexos e estão interligados. E temos de ser mais persistentes na tentativa de moldar os desfechos políticos e mais resolutos em garantir que os nossos negócios não são esmagados por más políticas.

 

Cabe a todos nós – não apenas às estratégias empresariais ou legisladores, mas também aos cidadãos e consumidores – aprofundar o nosso conhecimento sobre as ligações entre as empresas e a política. Só assim podemos assegurar que os debates políticos e as decisões são tomadas com base nos factos e que estamos bem preparados para julgar aqueles que tomam as decisões, interagir com eles e, em última instância, considerá-los responsáveis. A alternativa é renunciar à nossa capacidade de defender os nossos próprios interesses.

 

Má governação empresarial, argumentei, era um dos maiores riscos que as empresas enfrentavam em 2017. De muitas maneiras, isto continua a ser uma das maiores preocupações. Mas agora são acompanhadas por uma extrema incerteza política.

 

A forma como as empresas respondem vai moldar o nosso futuro. Por exemplo, nos EUA há a tentação para capitalizar a desregulação em áreas como a perfuração de petróleo, a protecção dos consumidores, a imigração, a política comercial e as salvaguardas ambientais, promovidas pela administração Trump. Mas o que pode parecer um trunfo para os negócios no curto prazo, pode provocar danos irreparáveis no longo prazo, com implicações em todos os sectores, para cada investidor e para cada consumidor.

 

É da responsabilidade de todos nós – membros do conselho de administração, accionistas, funcionários e consumidores – obrigar as empresas a olhar para além dos lucros no curto prazo e cumprir com a sua responsabilidade mais alargada. Não podemos simplesmente esperar que aconteça o melhor.

 

E se sentirmos que as nossas vozes não vão ser ouvidas, faríamos bem em considerar os esforços recentes para catalisar a mudança. A campanha #MeToo equivale ao julgamento de muitos perpetradores de assédio sexual poderosos. A Shareholder Spring marcou um aumento do escrutínio dos investidores quanto aos pacotes remuneratórios dos executivos. Casos de abuso laboral e corrupção em larga escala foram conhecidos, levando a uma mudança real em algumas áreas inesperadas (como a FIFA).

 

Ignorar a política não vai resolver os nossos problemas. Mas um envolvimento construtivo pode resolver.

 

Lucy P. Marcus é a CEO da Marcus Venture Consulting.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

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