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Andrew Sheng e Xiao Geng 05 de Julho de 2018 às 14:00

Fúria na América

O presidente dos EUA, Donald Trump, explorou a raiva popular para promover os seus próprios interesses. Mas ele não criou essa raiva; as elites americanas passaram décadas a fazê-lo, criando as condições para que uma figura como Trump emergisse.

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Muitos defendem que a rebelião populista de hoje no Ocidente é culpa da extrema-direita, que ganhou votos alegando estar a responder a reivindicações da classe trabalhadora, enquanto alimenta o medo e promove a polarização. Mas, ao culpar os líderes que se aproveitaram da raiva popular, muitos ignoram o poder dessa própria raiva, que é dirigida a elites cuja riqueza disparou nos últimos 30 anos, enquanto a das classes média e trabalhadora permaneceu estagnada.

 

Duas análises recentes vão ao centro dos problemas que estão em jogo, particularmente nos Estados Unidos, mas também no resto do mundo. No seu novo livro, "Tailspin", o jornalista Steven Brill argumenta que as instituições dos Estados Unidos não são mais adequadas, porque protegem apenas alguns, deixando o resto vulnerável a comportamentos predatórios em nome do mercado livre. De acordo com Brill, é o resultado da meritocracia americana: os melhores e mais brilhantes tiveram a oportunidade de chegar ao topo, mas depois basicamente puxaram a escada atrás deles, enquanto capturavam instituições democráticas e as usavam para consolidar privilégios especiais para si próprios.

 

O autor Matthew Stewart concorda, argumentando que "a classe meritocrática dominou o velho truque de consolidar a riqueza e passar os privilégios de geração em geração em detrimento dos filhos de outras pessoas". Stewart mostra que em meados da década de 1980, a parcela da riqueza dos EUA detida pelos 90% mais pobres da população era de 35%; três décadas depois, detinham apenas 20%, com quase tudo o que perderam a passar para os 0,1% mais ricos. Os 9,9% entre esses dois grupos - o que Stewart chama de "nova aristocracia americana" - compreende o que costumava ser chamado de classe média. Em 1963, os 90% teriam que aumentar a sua riqueza em seis vezes para atingir o nível dos 9,9%; na década de 2010, precisavam de 25 vezes a sua riqueza para alcançar aquele nível.

 

Grande parte da população dos EUA está a trabalhar mais do que nunca, mas sofreu uma quebra nos padrões de vida, agravada pelos altos níveis de endividamento das famílias e, em muitos casos, falta de seguro de saúde. Os 10% mais ricos têm fácil acesso ao ensino superior, o que permitirá que os seus filhos tenham os mesmos privilégios que eles; os 90% mais pobres precisam de trabalhar muito mais para pagar as propinas, e normalmente terminam os estudos com uma grande dívida para pagar. Os 10% mais ricos têm acesso a cuidados médicos de primeira qualidade; os 90% mais pobres geralmente não têm, ou têm de pagar um preço excepcionalmente alto por isso.

 

A fiscalidade deveria trazer algum equilíbrio. Mas os republicanos dos Estados Unidos há muito que favorecem reduções dos impostos sobre os mais ricos, argumentando que isso trará investimento, emprego e crescimento económico, fazendo com que a riqueza "escorra" para o resto da sociedade. Na verdade, reduzir os impostos aos mais ricos apenas reforça ainda mais as suas vantagens, exacerbando a desigualdade.

 

Para piorar as coisas, os pobres pagam mais impostos indirectos (sobre terrenos, imóveis e bens de consumo), e os 20% mais pobres da população americana pagam mais do dobro dos 1% mais ricos em impostos estaduais. Acrescente-se a isso os desafios impostos pela automação e pela robotização - já para não falar nos desastres naturais cada vez mais frequentes e intensos - e não é difícil perceber porque é que tantas pessoas estão tão furiosas.

 

De acordo com Stewart, os 9,9% são "a equipa que comanda a máquina que canaliza recursos dos 90% para os 0,1%", retirando alegremente a sua "parte dos despojos". Mas a desigualdade gerada por essa máquina pode ter sérias consequências, na medida em que estimula o descontentamento social e, como estamos a ver nos Estados Unidos, políticas erráticas. Como argumenta o historiador austríaco Walter Scheidel, a desigualdade foi historicamente contrariada através da guerra, revolução, colapso do Estado ou desastres naturais.

 

Evitar um evento tão dramático exigiria que os 10% fizessem um trabalho muito melhor para promover os interesses dos 90%, em termos de rendimento, riqueza, bem-estar e oportunidades. No entanto, uma combinação de miopia económica e polarização política levou muitos a tentarem dirigir a raiva popular contra os imigrantes, a China e o comércio (inclusive com aliados próximos). Como resultado, o mundo inteiro está agora preso numa guerra proteccionista que ninguém vai ganhar.

 

É verdade que, historicamente, as contradições e os desequilíbrios internos levaram muitas vezes a conflitos entre Estados. Mas isso não é inevitável. Pelo contrário, o resultado depende da qualidade da liderança. Nos EUA, por exemplo, George Washington, Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt conseguiram fortalecer o seu país porque reconheceram a necessidade de abordar as divisões internas à luz dos valores centrais, da posição global e dos objectivos de longo prazo dos EUA.

 

O presidente dos EUA, Donald Trump, explorou a raiva popular para promover os seus próprios interesses. Mas ele não criou essa raiva; as elites americanas passaram décadas a fazê-lo, criando as condições para que uma figura como Trump emergisse. Agora que Trump está no comando, as condições dos 90% deverão deteriorar-se ainda mais. A sua abordagem ao comércio, em particular, não só não vai ajudar as pessoas que ele diz representar como destruirá o sentido de justiça e protecção que historicamente vinculou as massas aos seus líderes.

 

Culpar os estrangeiros é politicamente conveniente. Mas a única forma de "tornar a América grande novamente" é resolvendo as suas injustiças internas. Nenhuma tarifa ou muro de fronteira pode fazer isso.

 

Andrew Sheng é membro do Asia Global Institute da Universidade de Hong Kong e do Conselho Consultivo de Finanças Sustentáveis da UNEP. Xiao Geng, presidente do Hong Kong Institution for International Finance, é professor na Universidade de Hong Kong.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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