Opinião
As térmitas da dívida chinesa
A perda de controlo do governo chinês sobre a economia está a tornar-se cada vez mais evidente. A ascensão meteórica e posterior colapso do mercado de acções do país tem deixado os investidores abalados. Mas o verdadeiro sinal de alerta tem sido o dos esforços tardios para resolver o endividamento e o desperdício dos governos locais.
Não há melhor metáfora para o desafio económico com que a China se depara do que a obra arquitectónica futurista projectada para abrigar a rede de televisão estatal do país, a CCTV. Poucos meses antes da data prevista para a conclusão do edifício, em 2009, funcionários da rede de televisão realizaram uma exibição de fogo de artifício não autorizado, provocando um incêndio que consumiu um edifício mais pequeno no complexo, uma torre em forma de cunha que os moradores de Pequim haviam apelidado de Ninho de Térmitas.
O fogo atrasou a conclusão da sede da CCTV até 2012. O Ninho de Térmitas permanece inacabado e desocupado; a sua integridade estrutural foi destruída no incêndio, e não pode ser demolido devido aos receios de prejudicar o edifício maior, ao lado. Grande parte da estrutura não se pode livrar do fardo do mal.
Os dois edifícios fazem lembrar a economia da China, cada vez mais dividida: uma nova economia, baseada nos serviços e no consumo, sobrecarregada pela velha economia, mais lenta e composta por sectores, como a siderurgia e a mineração, que são ineficientes e sofrem de excesso de capacidade. Com um pé em cada uma delas está o mercado imobiliário do país, que é caracterizada por um excesso de capacidade maciço nas cidades médias e pequenas e por uma forte procura nas grandes cidades.
O problema é agravado pela insistência dos líderes da China em manter metas de crescimento elevadas – 7%, actualmente – e pela consequente dependência do crédito para atingir esses objectivos. Uma vez que o sistema de crédito foi projectado em torno de garantias implícitas do Estado, a maior parte do financiamento é mal alocado para sectores menos eficientes e altamente endividados da economia. Como resultado, as bases do crescimento milagroso da China estão constantemente a ser corroídas por um excesso de dívida que mostra poucos sinais de recuo.
A perda de controlo do governo sobre a economia está a tornar-se cada vez mais evidente. A ascensão meteórica e posterior colapso do mercado de acções do país tem deixado os investidores abalados. Mas o verdadeiro sinal de alerta tem sido o dos esforços tardios para resolver o endividamento e o desperdício dos governos locais.
A primeira tentativa do Gabinete Nacional de Auditoria para estimar a dimensão do endividamento da administração local descobriu um montante equivalente a 26% do PIB de 2010. Uma segunda tentativa, em meados de 2013, revelou um novo aumento para 32% do PIB. E o mais recente estudo da Academia Chinesa de Ciências Sociais mostra que a dívida subiu acentuadamente para 47,5% do PIB, no final de 2014.
Em Novembro de 2013, o presidente Xi Jinping anunciou uma agenda de reformas que tinha como objectivo aumentar o papel do mercado na economia da China. A esperança era que essas reformas ajudassem a resolver o problema da má alocação de capital, que parecia estar a conduzir a um aumento insustentável da dívida.
A dívida dos governos locais tornou-se o principal teste. No início de 2015, o governo central anunciou planos para converter os empréstimos bancários de curto prazo (e juros elevados) dos governos locais em títulos de longo prazo. Aumentando a maturidade da dívida, o governo central esperava aliviar as restrições de financiamento para os governos locais e permitir-lhes prosseguir o estímulo financeiro.
Quando os bancos chineses se recusaram a aceitar os juros baixos oferecidos nos novos títulos de dívida, o objectivo de aumentar o papel do mercado na economia foi por água abaixo. O governo obrigou os bancos a executarem a troca de dívida. Sem surpresa, os bancos tornaram-se, de repente, avessos ao risco. Os governos locais descobriram que, mesmo com uma melhor posição de liquidez, os bancos estavam relutantes em conceder novos empréstimos.
Ao mesmo tempo, uma queda no mercado imobiliário privou os governos locais da sua principal fonte de receita: a venda de terras. Assim, seguiu-se um dos desenvolvimentos mais chocantes da política económica chinesa moderna: o apelo do governo para o estímulo foi simplesmente ignorado.
A China parece estar a cair numa armadilha que, assiduamente, procurou evitar. O problema da dívida do país tende a piorar à medida que o governo negligencia as suas reformas favoráveis aos objectivos de crescimento a curto prazo. O arrastamento da economia vai aumentar à medida que os recursos continuam a ser desviados para manter vivas empresas ineficientes. Os bancos vão tornar-se cada vez mais avessos ao risco, procurando esconder dívidas incobráveis.
O governo tem procurado aumentar a liquidez aliviando os controlos sobre o movimento de capitais. Isso não só enfraquece ainda mais o seu controlo sobre a economia, como também cria o risco de uma crise financeira que poderia arrastar os seus vizinhos e outros mercados emergentes. Nesta altura, com a valorização do dólar a juntar-se às preocupações económicas da China – que viu a sua moeda apreciar acentuadamente face aos pares regionais - as autoridades recuaram para os seus velhos instintos e decidiram desvalorizar a moeda.
Isso não será suficiente. O mercado imobiliário da China está em deflação. Os seus mercados de acções têm sido desacreditados. E a sua economia parece cada vez mais fraca. Como resultado, a grande poupança interna do país está a mover-se cada vez mais para o exterior. Em relação ao tamanho da dívida externa da China e do grande volume de dinheiro que poderá ir para o estrangeiro, até mesmo as suas reservas cambiais de 3,7 biliões de dólares começam a parecer insignificantes.
Como as térmitas, a dívida tem uma capacidade única para construir rapidamente os alicerces de uma economia. Quando a infestação é detectada, muitas vezes é demasiado tarde. Se a China quer reverter os danos, precisa de se concentrar na desalavancagem da dívida, reparar o seu mecanismo de alocação de capital, e atrasar a abolição dos controlos de capitais. A economia do país deverá sofrer uma crise de crescimento nos próximos 12-24 meses. A sua gravidade será determinada pelo governo: ou faz ajustamentos difíceis já ou – como o Japão na década de 1990 - tenta esconder as térmitas.
Gene Frieda é estratega global do Moore Europe Capital Management.
Direitos de autor: Project Syndicate, 2015.
Tradução: Rita Faria