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15 de Novembro de 2017 às 14:00

A obsessão perigosa da Alemanha

O programa do novo governo vai, provavelmente, reflectir a suspeita que a Alemanha tem de que os outros Estados-membros da UE querem resolver os seus problemas com o dinheiro da Alemanha em vez de fazerem reformas internas.

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À medida que a germânica União Democrata-Cristã (CDU) e o seu partido irmão bávaro, a União Social-Cristã (CSU), procuram formar a "coligação Jamaica", algo sem precedentes, com os democratas liberais (FDP) e com os Verdes, o resto da Europa aguarda ansiosamente pelo programa de governo que vai resultar destas negociações.

 

A parada é alta para a Europa porque estes não são tempos normais. O crescimento do nacionalismo económico, as ameaças crescentes à segurança, e a crise dos refugiados que continua, fizeram com que seja ainda mais necessário que as respostas dadas sejam colectivas. A China está a tornar-se cada vez mais assertiva e a administração norte-americana do presidente Donald Trump já tornou claro o seu desdém pela União Europeia (UE) e também já deu conta das suas suspeitas em relação ao poder económico da Alemanha.

 

Internamente, o racional da UE está a ser testado pelo Brexit e pelos governos desafiadores da Polónia e Hungria – dois países que, como Constanze Stelzenmüller, da Brookings Institution, diz, recebem os benefícios de serem membros da UE mas ignoraram as suas obrigações correspondentes.

 

Neste contexto, a eleição de Emmanuel Macron para a presidência francesa, em Maio, foi um alívio para a Alemanha. Ainda assim, Macron colocou a Alemanha na posição desconfortável de ter de responder às suas propostas para reformas ao nível da UE. Ao apelar à criação de um fundo de defesa comum da União Europeia, à harmonização fiscal e a um orçamento conjunto da Zona Euro, Macron está a levantar o status quo europeu.

 

A questão agora é se a maior e mais próspera economia europeia vai ter a liderança que estes tempos difíceis exigem. Cada partido na coligação fala em trazer uma perspectiva diferente para cima da mesa. Em termos europeus, a CDU da chanceler Angela Merkel, que está no poder há 12 anos consecutivos, vai trazer continuidade. Mas a CSU, mais conservadora, tem-se colocado mais à direita devido à concorrência que é feita pelos populistas do Alternative für Deutschland (AfD).

 

Em relação aos outros dois partidos, o FDP adoptou uma linha dura em relação à Europa. Os seus líderes sugeriram que a Grécia devia deixar o euro e que o mecanismo da UE para resgatar países em dificuldades devia ser desmantelado. Por outro lado, os Verdes estão interessados em aprofundar a integração europeia; mas essa não é a sua principal prioridade e eles são o partido mais pequeno sentado à mesa.

 

Finalmente, o programa do novo governo vai, provavelmente, reflectir a suspeita que a Alemanha tem de que os outros Estados-membros da UE querem resolver os seus problemas com o dinheiro da Alemanha em vez de fazerem reformas internas. Os políticos germânicos e os comentadores avaliam quase todas as propostas para reformas ao nível da União Europeia através do seu prisma distributivo. Planos que não tenham a intenção de ter como resultado transferências estruturais são sistematicamente analisados para confirmar que não se vão tornar em distribuidores de dinheiro para outros membros da UE.

 

Por exemplo, os alemães olham para o orçamento comum não como uma forma de financiar bens públicos, como investigação ou infra-estruturas, mas como um meio para obrigar a Alemanha a cobrir as despesas de outros países. De igual forma, o seguro de desemprego comum é visto como um plano para fazer com que os alemães paguem aos desempregados em Espanha ou na França. E o programa de garantia de depósitos para os bancos é considerado como uma forma de obrigar os depositantes prudentes germânicos a pagar pelo crédito malparado em Itália.

 

Para ser claro, cada um destes receios pode ser legítimo. Todas as propostas certamente devem ser escrutinadas para assegurar que não vão existir abusos ou que não há um risco moral. A solidariedade europeia não é uma rua de sentido único.

 

Mas, ao mesmo tempo, os líderes alemães têm de reconhecer que o seu foco nos efeitos distributivos é tóxico. Deviam recordar o momento, em 1979, quando a primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, foi a uma cimeira europeia e disse: "quero o meu dinheiro de volta". A mesma lógica foi mostrada quase 40 anos depois, durante a campanha para o Brexit, quando os políticos partidários do "Leave" erradamente afirmaram que a saída da União Europeia iria trazer "o dinheiro de volta" para o Serviço Nacional de Saúde.

 

Porque é que a Alemanha se tornou tão obcecada e com medo de pagar demasiado? O orçamento da UE contém muito que pode ser criticado, mas dificilmente ameaça de uma forma injusta a Alemanha. O maior contribuinte líquido pode ser a Alemanha, mas isso é porque é a maior economia. Com uma percentagem do seu rendimento nacional também contribuem países como a Bélgica, a França e a Holanda, sendo que a percentagem que dão é significativa.

 

A Alemanha teme que o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) sirva como um canal para esconder transferências, nomeadamente, infundadas. Sim, o MEE beneficia de baixos custos de financiamento, que são basicamente transmitidos aos países. Se a Grécia não conseguir reembolsar a sua dívida, os accionistas do MEE vão sofrer perdas; e o risco não é contabilizado na taxa de juro que a Grécia paga. Mas, até agora, o MEE tem continuamente apresentado lucros e qualquer perda que tenha vai ser repartida entre todos os accionistas – incluindo, por exemplo, Itália. O MEE está longe de ser uma máquina de subsídios financiada pelos contribuintes germânicos.

 

Alguns na Alemanha também censuram o chamado sistema Target2, que regista os excedentes e défices bilaterais dos bancos centrais nacionais em relação ao Banco Central Europeu. Hans-Werner Sinn, da Universidade de Munique, por exemplo, argumenta que o sistema Target se tornou um veículo para operações escondidas para beneficiar os países devedores do Sul da Europa. A verdade é que, em Setembro, o banco central da Alemanha tinha um excedente líquido de 878 mil milhões de euros vis-à-vis no BCE, enquanto a Itália e a Espanha tinham défices de 432 mil milhões de euros e 373 mil milhões de euros, respectivamente. Estas posições reflectem de que forma os fluxos oficiais estão ainda a substituir os fluxos privados.

 

Mas mais uma vez este acordo não custou à Alemanha um único euro. Pelo contrário, o sistema Target é essencialmente um regime de seguro colectivo: se um banco central nacional estiver para entrar em incumprimento, a perda iria ser partilhada entre os accionistas do BCE. O sistema permite também às exportadoras alemãs continuarem a vender os seus produtos no Sul da Europa porque garante que eles vão pagar. A declaração de que a Alemanha perde com isto é simplesmente falsa.

 

Vai ser sempre do interesse de um partido político responder aos temores do seu eleitorado. Mas os políticos têm também o dever de permitir que os eleitores saibam quando os seus receios são excessivos ou infundados. A Europa precisa de uma Alemanha que vete propostas que não estejam bem elaboradas. Mas precisa também de uma Alemanha que possa ultrapassar as suas obsessões e que seja líder.

 

Com as actuais negociações para formar uma coligação, os líderes alemães têm uma oportunidade para avaliar os novos desenvolvimentos mundiais que vão ter implicações de longo alcance tanto para a Europa como para a Alemanha. Eles têm de decidir se é mais arriscado não fazer nada ou tomar a iniciativa. Ninguém espera uma conversão Damascena. Mas é de esperar que um governo vá estar mais disponível para oferecer soluções.

 

Jean Pisani-Ferry é professor na Hertie School of Governance em Berlim e na Sciences Po em Paris. Actualmente lidera o Tommaso Padoa Schioppa no European University Institute.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro
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