Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
03 de Janeiro de 2017 às 20:00

A guerra comercial de Trump

Para uma economia norte-americana que tem falta de poupanças, vai ser preciso muito mais do que atacar a China para tornar a América grande novamente. Tornar o comércio numa arma de destruição económica massiva pode ser um erro político de proporções épicas.

  • 2
  • ...

Durante a sua campanha, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, usou o comércio externo como para-raios na sua suposta defesa da classe média americana. Isto não é um táctica invulgar para os candidatos de qualquer ponto do espectro político. O que não é comum é que Trump não tenha moderado o seu tom anti-comércio desde que venceu as eleições. Em vez disso, aumentou a fasquia e disparou uma série de avisos preliminares que podem tornar-se numa guerra comercial mundial, com consequências desastrosas para os Estados Unidos e para o resto do mundo.

 

Consideremos as decisões pessoais fundamentais de Trump. O industrial Wilbur Ross, designado Secretário do Comércio, tem sido claro no seu desejo de revogar os acordos comerciais "idiotas" dos Estados Unidos. Peter Navarro, um professor de Economia na Universidade da Califórnia, vai ser o director do Conselho Nacional do Comércio (National Trade Council) – uma nova área política da Casa Branca que vai ser estabelecida a par com o Conselho de Segurança Nacional (National Security Council) e o Conselho Nacional Económico (National Economic Council). Navarro é um dos falcões norte-americanos com uma visão mais extrema em relação à China. Os títulos dos seus dois mais recentes livros - Death by China (Morte pela China, publicado em 2011) e Crouching Tiger: What China’s Militarism Means for the World (Crouching Tiger: O que o militarismo chinês significa para o mundo, publicado em 2015) – dizem muito sobre os seus preconceitos.

 

Ross e Navarro são também co-autores de um documento com posições em termos de política económica, publicados no site da campanha de Trump, que colocam à prova qualquer semelhança com credibilidade. Agora eles vão ter a oportunidade de colocar as suas ideias em prática. E, de facto, o processo já começou.

 

Trump tornou claro que vai retirar imediatamente os Estados Unidos da América (EUA) da Parceria Transpacífico (TPP na sigla em inglês) – em sintonia com as críticas lançadas por Ross aos acordos comerciais norte-americanos. E a sua vontade descarada de desafiar a política "Uma China", que tem 40 anos, ao falar directamente com a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen – já para não falar dos tweets anti-China que se seguiram -, deixa poucas dúvidas de que a sua administração vai seguir a receita de Navarro e colocar a mira no maior e mais poderoso parceiro comercial dos Estados Unidos.

 

Claro que, Trump, o auto-proclamado mestre da negociação, pode simplesmente estar a passar esta mensagem para colocar a China e o mundo de sobreaviso, de forma a que os restantes países saibam que os Estados Unidos estão preparados para operar a partir de um posição de força na área do comércio externo.

 

Mas, apesar desta conversa dura cair bem entre os eleitores, falha num dos pontos da realidade: o maior défice comercial dos Estados Unidos – uma manifestação visível das suas baixas poupanças – coloca em causa a noção de poder económico. Um défice significativo ao nível das poupanças domésticas, tal como o que aflige os EUA, explica o apetite insaciável norte-americano por excedentes de poupança do estrangeiro, o que acaba por gerar o seu défice da conta corrente crónico e o seu elevado défice comercial.

 

Os negociadores que tentam abordar este problema macroeconómico país a país não podem ser bem-sucedidos: os Estados Unidos estavam numa situação de défice comercial com 101 países em 2015. Não pode haver uma solução bilateral para este problema multilateral. É como o provérbio do menino holandês que quis travar a saída de água de um dique com um dedo. Se a fonte do problema não for abordada – a falta de poupanças deverá piorar se Trump permitir o alargamento dos défices orçamentais federais -, o défice norte-americano da conta corrente e o défice comercial apenas vão crescer. Apertar a China irá apenas mudar o desequilíbrio comercial para outros países – muito provavelmente com custos de produção mais elevados, o que efectivamente terá como efeito aumentar o preço dos bens importados vendidos às fortemente pressionadas famílias norte-americanas.

 

Mas a história não termina aqui. A administração Trump está a jogar com munições reais, o que terá repercussões mundiais e profundas. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que na provável resposta chinesa à nova demonstração de força dos EUA. A equipa de Trump subestima a reacção chinesa às suas ameaças – porque acredita que os Estados Unidos não têm nada a perder e tudo a ganhar.

 

Infelizmente, talvez não seja assim. Gostem ou não, os Estados Unidos e a China estão presos numa relação económica co-dependente. Sim, a China depende da procura norte-americana pelas suas exportações. Mas os Estados Unidos também dependem da China: os chineses detêm 1,5 biliões de dólares em títulos do Tesouro norte-americano e outros activos denominados em dólares. Além disso, a China é o terceiro maior mercado exportador dos EUA (depois do Canadá e do México) e é o que está a expandir-se mais rapidamente – dificilmente algo inconsequente para uma economia norte-americana que está ávida por crescimento. É insensato pensar que os EUA têm todas as cartas desta relação económica bilateral.

 

A co-dependência é uma ligação muito reactiva. Se um dos parceiros mudar os termos do acordo, o outro provavelmente responde da mesma maneira. Se os Estados Unidos forem atrás da China – como Trump, Navarro e Ross há muito advogam e parecem estar a fazer – têm também de enfrentar as consequências. Na frente económica, abre a possibilidade da implementação de tarifas sobre as exportações norte-americanas para a China. Além disso, isso pode ter ramificações nas compras chinesas de títulos do Tesouro. Outros países – fortemente ligados à China através das cadeias mundiais de abastecimento – podem também impor as suas próprias tarifas compensatórias.

 

As guerras mundiais comerciais são raras. Mas, tal como os conflitos militares, frequentemente começam com conflitos acidentais ou mal-entendidos. Há mais de 85 anos, o senador norte-americano Reed Smoot e o representante Willis Hawley dispararam o primeiro tiro ao apoiarem a Lei de Tarifas de 1930. Isso levou a uma guerra comercial global catastrófica, que muitos acreditam ter transformado uma recessão séria na Grande Depressão.

 

É uma loucura ignorar as lições da história. Para uma económica norte-americana que tem falta de poupanças, vai ser preciso muito mais do que atacar a China para tornar a América grande novamente. Tornar o comércio numa arma de destruição económica massiva pode ser um erro político de proporções épicas.

 

Stephen S. Roach, membro do corpo docente da Universidade de Yale e ex-presidente do Morgan Stanley na Ásia, é o autor de "Unbalanced: The Codependency of America and China".

 

Copyright: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org

Tradução: Ana Laranjeiro

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio