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26 de Agosto de 2002 às 15:15

Zé, George, Georg e Sjors

Para empresas que façam o seu «trabalho de casa» irão existir oportunidades para melhorar o seu resultado financeiro e acomodar de forma construtiva os requisitos de receitas/retorno dos seus bancos. Hugo Van Wijk, Vallstein

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Que tal relembrar a velha história sobre o Zé que deve dinheiro ao Pedro? Uma certa noite, o Zé não consegue adormecer porque no dia seguinte tem que repagar a sua dívida ao Pedro mas não tem fundos disponíveis para cumprir com a sua obrigação. Teresa, a mulher do Zé, fica furiosa e impaciente com o seu marido.

«Por que é que tu não te levantas, abres a janela e gritas, por forma a que o Pedro te ouça, que não lhe consegues repagar? Seguramente conseguirás adormecer!». O Zé não entendeu perfeitamente o conselho da Teresa, mas decide experimentar. Levanta-se da cama, abre a janela e grita: «Pedro, Pedro, acorda! Sou eu, o Zé!».

O Zé, visivelmente irritado, abre a sua janela e responde: «O que é que se passa? São duas da manhã!». «Sim, mas queria apenas comunicar que não te poderei repagar a minha dívida amanhã. Boa noite.», clama o Zé, fechando a sua janela. Ele volta para a cama, mas continua sem conseguir dormir. «Teresa», diz ele após cinco minutos, «será que o teu conselho foi bom? Eu continuo sem adormecer.» «Sim, de acordo», responde a Teresa, «mas agora o Pedro também não dorme».

Agora imaginem que os bancos «não conseguem adormecer» porque muitos dos seus clientes, à semelhança do Zé, começam a «gritar» e a afirmar que não conseguem repagar os seus empréstimos. Pensem no George da Enron ou Worldcom, ou no Georg da Philip Holzmann, Kirch e Babcock, ou no Sjors da KPN Qwest.

Por forma a assegurar que os bancos estão suficientemente capitalizados para enfrentarem um ou mais Zés, o Acordo de Basileia de 1988 estabeleceu padrões mínimos de solvabilidade para os bancos. Este conceito de solvabilidade pretende dotar os bancos com os meios financeiros necessários para acomodar perdas de crédito inesperadas (relativamente às perdas de crédito esperadas, os bancos supostamente deveriam contabilizar provisões) e o nível de capital adequado foi estabelecido pelo Acordo de 1988 em 8% dos activos ajustados pelo respectivo risco.

O ajustamento do risco no Acordo original é bastante alargado, permitindo p.ex. efectuar uma distinção básica entre Estado e sector privado, mas apenas permite uma ligeira diferenciação dentro do próprio sector privado. Consequentemente, o facto do banco estar a emprestar capital a um cliente do sector privado com um «rating» de crédito mau ou bom, não leva a uma diferenciação em termos do requisito de solvabilidade regulamentar; se fosse o caso, as margens aplicadas aos respectivos empréstimos iriam seguramente ser bastante diferentes.

Para ajustar esta e outras imperfeições, o Acordo de Basileia está presentemente a ser alvo de uma revisão profunda. O novo Acordo será provavelmente posto em práctica em 2006, mas os respectivos efeitos já se começam a sentir no sector bancário, em especial, e nas empresas em geral. Internamente, os bancos mais sofisticados já há muito que estão familiarizados com a aplicação do conceito de RAROC («Risk Adjusted Return on Capital»), uma metodologia que faz parte do processo de aprovação de crédito e que permite uma variação ampla no «rating» de risco de crédito e nos requisitos de capital associados. Basileia II irá permitir aos bancos a utilização de semelhantes abordagens internas, substituindo as medidas «tamanho único».

No processo de estimativa de crédito de risco, é possível distinguir entre uma abordagem quantitativa e qualitativa. A primeira assenta bastante em números e projecções, analisando os Relatórios Anuais e fazendo comparações com empresas semelhantes, do mesmo sector económico, e com rácios associados a determinados perfis de risco.

A análise qualitativa está mais focalizada em aspectos tais como a qualidade de gestão e do Management da empresa, a respectiva estratégia, a sua posição competitiva, etc. Muitos bancos utilizam uma mistura de ambas as abordagens, permitindo por vezes que juízos de valor se possam sobrepor aos indicadores quantitativos.

Um dos objectivos óbvios da estimativa do risco prende-se com a conclusão de poder ou não conceder o empréstimo. Um objectivo secundário é o de poder aplicar a margem correcta, uma vez concedido o crédito. Este «pricing», por sua vez, deverá compensar o risco, o trabalho administrativo e os accionistas do banco.

Neste ponto, é altamente provável que as coisas se compliquem. No caso de obrigações, é claro que o único retorno para quem providencia os fundos advém do próprio instrumento. No entanto, no caso de empréstimos bancários, as receitas provenientes de empréstimos são uma parte integrante das receitas globais obtidas com o mesmo cliente, e o retorno para o accionista do banco poderá ser «subsidiado» por receitas de produtos que não absorvem (tanto) capital.

RAROC e Basileia II tornam estes assuntos ainda mais interessantes. Para além do «subsídio» cruzado através de outros produtos no contexto do «Wallet» (carteira) global do cliente, estes desenvolvimentos criam oportunidades claras para as empresas endividadas mas com um perfil de risco baixo.

Isto porque será necessário uma menor alocação de capital para empresas de menor risco, e como tal surgirão oportunidades ao nível do «pricing». Afinal, para atingir o mesmo objectivo em termos de retorno de capitais próprios, poderá ser suficiente uma menor margem caso o requisito de capital seja igualmente menor.

Poderá parecer simples, mas manter uma discussão com o seu banco relativamente a esta matéria é algo bem diferente. No entanto, seguramente que para as empresas que façam o seu «trabalho de casa» irão existir oportunidades interessantes para melhorar o seu resultado financeiro, e ao mesmo tempo acomodar de forma construtiva os requisitos de receitas/retorno dos seus bancos.

Comentários para o autor para rubensommer@vallstein.com

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

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