Opinião
Voltemos a falar de jornais
Os jornais portugueses estão a perder leitores. Sobretudo os jornais ditos "de referência", expressão tola e um pouco sobranceira. Devo dizer que prefiro o "Correio da Manhã" aqueloutros.
Traz mais notícias, é mais díspar nos comentários, e mais propenso a informar-nos dos problemas que directamente respeitam a todos nós. E é, também, o mais convicto.
Porquê "de referência" o "Público" e o "Diário de Notícias"? Não são mais bem escritos, não são mais "plurais", não são mais dedicados à causa pública, não são mais equânimes. Dedicam um desdém quase absoluto ao crime: raramente chamam para a primeira página assuntos daquela natureza que, em si mesmos, comportam uma elevadíssima dose de humanidade; recusam a campanha social, o combate em defesa de questões fulcrais. São notoriamente precaucionistas, cinzentíssimos e aborrecidíssimos.
Os seus comentadores e editorialistas tocam pelo mesmo banjo, com mansas variantes. As orientações culturais chegam a ser escabrosas. As omissões, delirantes. As "linhas" editoriais, derivas tontas. As estruturas noticiosas, aberrantes. Amiúde, causa sobressalto nos leitores aquilo que os responsáveis colocam como prioridade informativa.
O futebol, no aspecto mais perfunctório, atrai a facilidade e a preguiça de quem não sabe outra coisa que não seja a estratégia do Paulo Bento, a ironia sulfúrica de Pinto da Costa, o perónio quebrado do Anderson, as declarações de Luís Filipe Vieira. Ora, a verdade é que o futebol, indústria poderosíssima, deveria merecer uma atenção mais apurada da Imprensa "de referência". Não o é. Sei muito mais o que ocorre nos bastidores do jogo, lendo o "Correio da Manhã", que tem a coragem de associar o futebol às manigâncias dos grandes negócios obscuros.
Os jornais "de referência" são uma chatice inumerável, não se diferenciam um do outro, com pequenos pormenores dimensionais editam as mesmas notícias, os graus valorativos nivelam-se por baixo, com duas ou três excepções os "colunistas" provocam o bocejo ou o sorriso amarelo. Um jornalismo de fast-food, de pronto-a-vestir, quase sempre lisonjeiro para o poder, que se sente mal quando tem de tomar partido, vai atrás da moda do instante. Não cria, não possui grandeza, inimigo feroz da gramática e do bom-senso, e social e culturalmente desprezível.
Amo demais o jornalismo para me escusar de escrever palavras duras sobre o que por aí se edita. E o pior é que a esmagadora maioria dos elementos mais "velhos" das Redacções corroboram estas ideias. Há dias, um de esses "gestores" que ganham a vida a despedir pessoas, para "viabilizar a empresa", insurgia-se, num dos jornais "de referência", contra "essa coisa da memória". Bufando, insistiu: "Os jornais não precisam de memória nenhuma". Uma criatura deste jaez e estilo não passa de um cretino em estado ambulatório. Mas a verdade é que foram os dirigentes das Redacções quem, pela sua notória subserviência, deram origem ao nascimento desta espécie.
Um dos últimos grandes capitães de Imprensa, o dr. Guilherme Brás Medeiros, criador do "Diário Popular", sempre insistia em que o jornal era um produto específico de jornalistas, e estimulou a criação de uma estrutura profissional na qual os melhores chegaram a determinam a orientação noticiosa. Mais tarde, Francisco Pinto Balsemão actualizou, modernizando, a Redacção do famoso vespertino, que empregava trinta e dois jornalistas e detinha uma venda diária de 150 mil exemplares.
Evidentemente, há lugar para, pelo menos, dois grandes jornais. Estes, não o são. E ainda há gente capaz de os fazer. No estado actual das coisas, os leitores aborrecem uma Imprensa que diz ser isenta e imparcial (duas aldrabices) mas que, averiguadamente, se inclina para um ocioso conservadorismo. Inexistem os grandes inquéritos, as grandes entrevistas, as grandes crónicas, as grandes reportagens. Os "licenciados" em Comunicação Social (outra aberração) presumem que as "grandes reportagens" são as que se fazem "no estrangeiro". Bom: as maiores reportagens publicadas nos nossos jornais, desde os anos de 30 até à década de 80, foram realizadas no território nacional. Depois, há as grandes fraudes e as sombrias cumplicidades que atribuem o qualificativo de "grandes repórteres" ou de "grandes entrevistadores" a indivíduos de quinta categoria. Um desses é um plagiador contumaz, um aldrabilhas que confunde Balzac com Stendhal. E a ignorância, o analfabetismo vídeo-tape, a voracidade da soberba atingiram níveis despudorados.
O jornalismo é um acto de convicção. Um serviço público, a exigir dos seus profissionais elevadas doses de rectidão, de carácter, de criatividade e de gramática. A objectividade é uma procura quase inacessível. A imparcialidade, impossível de atingir. A independência e a neutralidade princípios extremamente escorregadios. Creio que a formação cultural auxilia o jornalista a atribuir ao texto uma ampla margem dedutiva, a fim de o leitor se tornar, ele sobretudo, no juiz do que lê. O jornalista toma partido na utilização do adjectivo. O adjectivo é a prosa a tomar partido. Foi-nos ensinado pelo maior de todos nós, Fernão Lopes, e encaminhado por António Vieira, Camilo, Eça, Ramalho, Fialho e outros mais. O adjectivo não distorce a realidade: evoca-a e convoca-a no colorido que a realidade detém. O texto apenas substantivado é indolor, incolor, afasta-se da verdade imediata, faz derivar a visão para o território frígido onde o calor humano não existe. Uma certeza impositiva: não há texto sem adjectivo.
Os jornais portugueses afastaram-se da realidade portuguesa. Mas, também, do que, internacionalmente, nos domínios da política, da arte, da literatura, do cinema, do teatro, nos possa, nacionalmente, interessar. Pouco ou nada sabemos do que acontece na América Latina. A informação sobre as eleições brasileiras constituiu uma vergonha - pela orientação ideológica, pela natureza das notícias, pelos comentários. Os escândalos do governo de Lula mereceram toda e exclusiva atenção, enquanto se omitiam as grandes reformas e conquistas sociais que beneficiaram milhões e milhões de brasileiros sobrevivendo no limiar da miséria mais atroz.
Basta frequentar, ocasionalmente que seja, a revista "Veja", e ler um subproduto jornalístico, chamado Diogo Mainardi, para se perceber o empreendimento reaccionário que estava (e está) em movimento. Há tempo, Hélio Fernandes, irmão do Millôr, e director da "Tribuna da Imprensa", publicou um artigo terrível, no qual revelava as fontes económicas e alimentares daquela revista. E A extraordinária, por volumosa, vitória de Lula não está firmemente consolidada. A direita brasileira é golpista, e tem escrita uma história sangrenta contra a democracia. Nunca perdoou a Lula as grandes alterações sociais realizadas. E tem "esquecido" os "mensalões" do tempo de Fernando Henrique Cardoso.
Dilecto: em algum jornal português estes factos foram noticiados? Verifique, reflicta e julgue.