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28 de Janeiro de 2008 às 13:59

Uma Questão de Justiça Fiscal

A Constituição da República Portuguesa consagra o dever fundamental de pagar impostos, bem como o princípio da igualdade tributária, enquanto pilares essenciais do Estado de direito democrático. Fica assim definido, também em matéria fiscal, um relacionam

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Ponto um, ninguém tem o direito de se eximir ao pagamento de impostos, desde que criados nos termos da Constituição. Ponto dois, todos os contribuintes cumpridores têm o direito de exigir que a administração fiscal combata a fraude e evasão fiscais por todos os meios legalmente admissíveis. E tudo isto por uma simples razão: o cumprimento do dever de cada um é uma exigência do direito de todos. Um direito que ao Estado incumbe garantir.

Traduzido em termos práticos, o princípio da igualdade tributária impõe que nenhuma das partes – neste caso concreto, o credor e o devedor tributários – seja prejudicada ou beneficiada pela morosidade dos tribunais. Algo que suscita imediatamente a questão, de novo em aberto, dos prazos de prescrição de dívidas fiscais e de caducidade das garantias prestadas. Pois de nada vale falar em justiça fiscal, se não se acautelar que as dívidas sejam efectivamente pagas à custa do património do devedor, e que esse património não seja, no decurso do processo, desbaratado, ficando assim impossibilitada a cobrança das dívidas em causa, findo o processo. Foi precisamente esta linha de razões que levou o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) a defender as alterações introduzidas, em matéria da prescrição e das garantias, pela Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei  nº.  53-A/2006, de 29 de Dezembro). Medidas essas que publicamente sustentei e que o Governo louvavelmente acolhera.

Sobre estas medidas, tenho ouvido dizer que 1) marcam um sério retrocesso a nível das garantias dos contribuintes e 2) instauram “bizarrias e aberrações jurídicas sem paralelo” no nosso sistema jurídico. Embora não se duvide da boa fé de quem fez tais críticas, enformadas decerto por uma preocupação genuína com as garantias do contribuinte – uma preocupação que assiste continuamente à acção do CSTAF –, é de contestar essa posição.  

Comecemos pela questão da prescrição da prestação tributária. Antes da sua recente alteração, a LGT previa, no art.º 49.º, n.º 1, a interrupção e suspensão do prazo de prescrição das dividas tributárias nos casos de “citação, reclamação, recurso hierárquico, impugnação e pedido de revisão oficiosa da liquidação?”, estabelecendo, no n.º 2 do mesmo artigo, que “a paragem do processo por período superior a um ano por facto não imputável ao sujeito passivo faz cessar o efeito previsto no número anterior, somando-se, neste caso, o tempo que decorrer após esse período ao que tiver decorrido até à data da autuação”.

Em 2006, este último preceito foi revogado, pelo que, actualmente, o prazo de prescrição suspende-se enquanto não houver decisão definitiva ou passada em julgado, que puser termo ao processo (n.º 4 do art.º 49.º da LGT). Estaremos nós perante uma “aberração jurídica”, sem paralelo no nosso sistema jurídico? A resposta é clara: não, de todo. O art.º 49.º, na sua nova redacção, limita-se a aplicar, ao domínio do contencioso tributário, o regime constante do Código Civil, cujo art.º 327.º, n.º 1, prevê, precisamente, que as dívidas não prescrevam no decurso do processo, determinando que, interrompida a prescrição pela citação, notificação ou acto equiparado, “o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo” (sendo, pois, indiferente que o processo esteja parado, muito ou pouco tempo, por facto imputável, ou não, ao sujeito passivo?). Por isso, das duas, uma: ou o nosso sistema jurídico está enfermado de bizarrias, ou estamos perante um caso de mera sensatez e salutar harmonização jurídica.

Detenhamo-nos, agora, na tão propalada questão da revogação da disposição legal sobre caducidade das garantias. Para acautelar que as dívidas sejam efectivamente custeadas pelo património do devedor, a lei estabelece que, nos processos de execução fiscal contra os contribuintes, sempre que estes apresentem reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda, a execução seja suspensa mediante prestação de garantia suficiente (bancária, por exemplo) ou entrega de bens à penhora. O art.º 183º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em vigor até final de 2006, previa que a garantia prestada para suspender a execução fiscal caducava “se a reclamação graciosa não [estivesse] decidida no prazo de um ano? ou se na impugnação judicial ou na oposição não [tivesse] sido proferida decisão em 1ª instância no prazo de três anos?”. E, quanto à penhora, esta podia ser levantada em iguais circunstâncias (cfr. anterior art. 235º, nº. 1, do CPPT). Face aos actuais níveis de pendência processual nos tribunais tributários, e morosidade daí decorrente, estas normas implicavam que, em inúmeros casos, não houvesse bens do devedor para garantir o pagamento da dívida exequenda. Uma situação insustentável, a que a Lei nº. 53-A/2006, de 29 de Dezembro, veio pôr cobro, ao determinar que a penhora e as garantias se mantenham até ao fim do processo. Traduzir-se-á esta lei num “assalto descarado” às garantias do contribuinte, como vem sendo sustentado por alguns comentadores? Assim seria, de facto, se os interesses e valores que as normas depostas visavam acautelar não se encontrassem suficientemente defendidas por via do disposto no art.º 53º da Lei Geral Tributária (LGT). Mas a verdade é que estão, porquanto, se o contribuinte obtiver ganho de causa, a administração fiscal fica obrigada a indemnizá-lo pelos prejuízos resultantes da prestação (indevida) de garantias. Ora, se a lei inequivocamente assegura que quem não tem razão suporta os encargos com a prestação da garantia, não se entende o porquê da resistência a alterações legais que vieram apenas repor o equilíbrio das partes, ao assegurar, igualmente, o pagamento da dívida exequenda.

De resto, aqueles que advogam a reposição do art.º 183.º-A do CPPT, na redacção anterior a 29 de Dezembro de 2006, bem como a manutenção do art.º 53.º da LGT, sancionam, porventura inadvertidamente, uma – essa, sim, séria – violação do princípio da igualdade das partes. É que a coexistência de tais normas redunda num duplo benefício para quem presta a garantia: não apenas permite deixar a descoberto a dívida, como também possibilita a indemnização pelos encargos suportados com a prestação das garantias. Já à administração fiscal, caso vença a causa, só resta esperar que, contrariamente ao que a experiência indica, haja ainda, após a resolução do litígio, património suficiente para assegurar a cobrança e o pagamento da dívida!

E não se pense que é apenas o credor tributário/administração fiscal que sai injustificadamente prejudicado sempre que o contribuinte não entrega o tributo devido. É que seremos afinal todos nós – e todos os nossos concidadãos que pagam atempadamente os seus impostos – a carregar o fardo, pesado, daquele incumprimento.

Finalmente, uma palavra, seguramente devida, sobre o problema da morosidade dos tribunais tributários, subjacente a muito desta exposição. Há quem interprete as medidas aqui defendidas como um prémio à ineficácia da administração da justiça. Deixemos falar os números: entre 2003 e 2006, deram entrada nos tribunais tributários de 1ª instância 39 922 processos; em 2006, o número médio de processos pendentes por juiz era 990 (mais 185 do que em 2004); e se os processos pendentes haviam entretanto aumentado, não fora por um decréscimo de produtividade dos juízes tributários. Antes pelo contrário: entre 2003 e 2006, a taxa de resolução processual aumentou em 25%. Resumindo: os processos tributários multiplicam-se, no nosso país, a uma velocidade vertiginosa, e o número de juízes, pese embora o seu esforço, é gritantemente insuficiente para os debelar. O resultado inevitável deste desequilíbrio são centenas de milhões de euros em processos em risco de prescrição. O CSTAF vem solicitando ao Governo várias medidas para inverter esta situação, entre elas, o recrutamento de novos juízes e a criação de tribunais de liquidação de pendências. Há neste apelo uma esperança, alicerçada no esforço, manifesto, dos juízes da jurisdição. Uma esperança que a reposição do art.º 183.ºA do CPPT, a ter lugar, irá seguramente corroer, senão mesmo destruir.

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