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Um artista imbecil

Um artista da Costa Rica expôs recentemente numa Galeria de Arte local um cão vadio, deixando-o morrer à fome e à sede perante os olhares dos espectadores. Segundo o próprio, esta “obra de arte” teria como objectivo chamar a atenção para o desprezo a que

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Em consequência, um abaixo-assinado contra o artista a circular na Internet recolheu em poucos dias mais de cento e cinquenta mil assinaturas.

O resto da história é irrelevante. A dona da Galeria, certamente assustada com a polémica, diz agora que o cão afinal não morreu e fugiu durante a noite. Por sua vez, o dito artista afirma que importante foi o facto de ninguém ter ajudado o animal ou lhe ter dado de comer. E por fim alguns críticos defenderam o acto considerando-o uma obra muito interessante e muito contemporânea. Aliás, ao que parece, estes acabaram mesmo por o premiar promovendo o seu autor que agora irá representar a Costa Rica numa Bienal, o que só mostra o estado de degradação mental a que chegou a cena artística no seu todo. Nenhuma justificação estética poderá iludir o facto de este artista ter usado e maltratado um indefeso animal só para conseguir projectar o seu próprio nome. Confirmando assim o quanto a necessidade de visibilidade, no muito competitivo meio, pode levar alguns a abdicar dos mais rudimentares princípios éticos.

A arte sempre foi e continua a ser uma actividade fundamental das sociedades humanas. Ligada sobretudo ao domínio do simbólico e do representacional a arte deu a ver, ao longo dos tempos, aquilo que só podia ser imaginado. Embora a componente da inovação tenha sido uma constante na criação artística, é com a modernidade que ela se torna central. A partir de finais do século XIX, a arte (ocidental) entra num acelerado processo de transformação, tanto formal quanto conceptual. Nesse percurso, dois momentos assumem uma particular importância. A “invenção” da arte abstracta liberta definitivamente o artista da necessidade de representação. Doravante o assunto da arte é a própria arte e não já nenhuma realidade exterior. Logo a seguir o acto de Marcel Duchamp, ao colocar um objecto banal, no caso um urinol, numa exposição, abriu as largas portas do “tudo pode ser arte” desde que colocado num particular contexto. Ou seja, a partir de Duchamp um cão vadio na rua é um cão vadio, mas numa Galeria de Arte é uma obra de arte.

Uma tão vasta abertura do campo criativo conduziu ao estado actual da chamada arte contemporânea. Ao lado positivo, pois agora a arte pode explorar todos os campos do conhecimento e da imaginação sem restrições, junta-se um lado crítico ou negativo. Desde logo na enorme profusão de banalidades. Uma imensidão de obras consiste simplesmente em colocar no espaço da arte, Galeria ou Museu, objectos comuns na pretensão de que com isso se geram novos sentidos. Ora na verdade para além da trivialidade do processo a maioria desses sentidos não ultrapassa, em conteúdo, aquilo que podia ser dito numa simples frase. Daí a boçalidade de tanta da arte contemporânea. Mas pior do que isso é precisamente o uso imbecil que se pode fazer deste mecanismo herdado de Duchamp. Na medida em que tudo é possível, seria necessário que este tipo de criações artísticas se regesse por alguns princípios e acima de tudo por um conceito que vai caindo em desuso: uma ética. Mas como se vê pelo exemplo que deu origem a este texto não é assim. Hoje muitos artistas que perderam totalmente o rumo não têm uma única ideia decente na cabeça e tudo fazem para obter os seus quinze segundos de fama, estão dispostos a cometer os actos mais desprezíveis em nome da arte. Chocar é sempre a solução mais fácil para quem não tem talento.

De qualquer modo, este caso não sendo o primeiro não será certamente o último. A criatividade artística não pode deixar de continuar a evoluir. Esse processo, o qual é essencialmente aleatório e de tentativa e erro, irá dando origem a notáveis obras, ao mesmo tempo que grandes aberrações. Muitas das vezes será difícil distinguir umas das outras. Não sendo viável o recurso a qualquer código deontológico, pois isso seria entrar em contradição com o princípio de total liberdade criativa, só podemos contar com a expressão cívica de cada um de nós. Afinal, tanta liberdade tem um artista de fazer uma determinada obra, como cada pessoa de o repudiar por isso mesmo. É assim que a condenação tão generalizada do acto imbecil deste artista é para mim o facto mais importante desta triste história. Entre outras coisas, prova que ainda há muita gente decente neste mundo.

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