Opinião
Simplesmente, não perdoar
Ao ensinarmos, temos que incutir nos alunos que a Economia é «racional». Fria. Profundamente dura, por vezes. Não porque os economistas o sejam, mas porque o Mundo é assim mesmo, e estes limitam-se a lê-lo numa linguagem que o Mundo também fala.
Ainda a banda era uma ilustre desconhecida que vagueava por bares e circuitos underground, em bicos-de-pés, para ganhar algum e fazer-se ouvir, já eu gostava da música dos U2. Mesmo com gostos variados, Bono Vox, The Edge e seus pares estão nas minhas preferências de sempre. Mas, para muitos, Bono é ainda o líder que dá voz à miséria e aos que são objecto da opressão, fome ou doença.
Vêm estes compassos a pretexto de um vivo debate há dias mantido numa aula em que se abordava o tema do risco em finanças, em particular do risco de crédito e da probabilidade de incumprimento. Tenho que reconhecer que a aula estava «a correr». Na casa das 65 a 70 pulsações por minuto. «Ratings», escalas, garantias reais, «scoring»? a matéria ia avançando. Ao ritmo de sempre.
Quando se chegou risco «soberano» - em que tentava explicar por que é que a dívida da República Portuguesa tem uma taxa de juro implícita (»yield») superior à do reino de Espanha ou da República Federal Alemã - , o batimento cardíaco médio na sala não ameaçava abandonar o intervalo-padrão. E lá se avançou para uma tabela em que se evidenciavam prémios de risco implícitos na dívida de mercados emergentes e países em vias de desenvolvimento - Rússia, Ucrânia, Indonésia, Brasil, Nigéria, Moçambique, ? e por aí fora. Depois, enunciei as razões «standard» que explicam o porquê de os Estados Unidos, a nação mais endividada do mundo, manterem os níveis de «rating» soberano mais sólidos do planeta, apesar de o seu endividamento externo (posição de investimento internacional, metodologia do FMI) atingir por esta altura os 25% do PIB.
Foi o ponto em que um dos estudantes presentes lançou a bem vinda confusão. «Ó professor, então e a proposta dos U2 de perdão da dívida externa aos países pobres do terceiro mundo? Se não for assim, como é que as coisas se resolvem?»
O João (nome fictício) referia-se à «The ONE Campaign» (ver www.theonecampaign.org/), de que Bono Vox é cabeça-de-cartaz e principal porta-voz. A pergunta, lançada de sopetão, não era nova: há vários anos que alguém a faz, com ou sem Bono na berra. Mas, com o vocalista à mistura, liderando legiões de milhões de fãs, a coisa fica mais difícil. Não porque o problema mude, esse é sempre o mesmo. Mas pela espantosa velocidade com que um discurso voluntarista se propaga quando o porta-voz é, apenas e só, a pessoa certa. E Bono é a pessoa certa, como Bob Geldof (outro de costela irlandesa) o foi com a «Band Aid», o «Live Aid» e o hino «We Are the World».
Eu sabia o que estava para vir. Aí com uns 60 pares de pulmões impelidos por um ritmo cardíaco em aceleração, a sala iria rapidamente ficar ofegante. Nada como deixar o debate correr naturalmente. Querem falar sobre? Excelente! E o que acham?
Escusado seria dizê-lo, tomáramos eu e os meus colegas vender tão bem as nossas lições como Bono faz passar a sua mensagem em favor de pobres e oprimidos. Esmagador, o juízo prevalecente era quase uníssono: perdoe-se a dívida dos países pobres, porque não? Não tenho a mínima dúvida de que, naquele instante, fosse Bono submetido a votos, ganharia com maioria absolutíssima e de braço no ar.
Ao ensinarmos, temos que incutir nos alunos que a Economia é «racional». Fria. Profundamente dura, por vezes. Não porque os economistas o sejam, mas porque o Mundo é assim mesmo, e estes limitam-se a lê-lo numa linguagem que o Mundo também fala.
Temos que ensinar porquê um aumento do desemprego pode ser uma péssima notícia e, simultaneamente, uma excelente notícia. Por que é que o furacão Katrina induzirá um crescimento mais forte no futuro, tragédia humana e devastação material à parte. Ou por que é que, à luz da «criação destrutiva» de Schumpeter, uma recessão pode (e deve) ser comparada a um transplante de coração: ou se faz, ou se morre.
Não é propriamente fácil refrear ânimos, menos ainda quando são quase unânimes. Coube-me a missão de re-climatizar o ambiente na sala. E lá tive que chamar a atenção para alguns «pequeninos» óbices aos voluntarismos de Bono Vox e de muitos comuns mortais. Porquê não perdoar?
Primeiro, pelo imperativo de não abalar a confiança no sistema e instituições financeiras, sustentáculo fundamental da economia mundial. Segundo, pelo efeito-dominó que a abertura de um precedente induz em catadupa sobre a generalidade dos devedores. Afinal, se se perdoa a outros, por que não a nós, que até fomos sempre cumpridores? Terceiro, pelo simples facto de que a ajuda unilateral (de bens ou capitais) tem efeitos corrosivos sobre as estruturas económicas locais nos países em vias de desenvolvimento. Se o excedente de produção de lacticínios na Europa for doado a países pobres, as estruturas locais de produção, ainda que incipientes, entrarão em colapso. Se dermos esmola ao pedinte, ele não deixará de pedir. Quarto, pela circunstância de que a larga maioria dos países pobres devedores é governada por poderes tirânicos e corruptos, que acabam por se apropriar dos benefícios materiais da ajuda internacional, pelo que os perdões de dívida, sem mais, apenas contribuiriam para perpetuar o poder absolutista de umas quantas elites parasitas.
Como os recursos são escassos, há que merecê-los. Em muitos dos países pobres, recursos não genuinamente merecidos são desbaratados. Seja petróleo, gás ou minérios, seja a ajuda material e financeira proveniente de países mais ricos. Por isso, mais reprodutivo do que um perdão de dívida, é estimular os países mais pobres a formular leis equitativas, a construir instituições públicas credíveis e a regular o melhor possível o funcionamento de mercados. Depois, o crescimento em países pobres será bem mais rápido e sustentável se estes honrarem os seus compromissos financeiros. É que os poucos que possam confiar num mau pagador terão provavelmente na sua mente negócios pouco claros.
Em suma - concluí, contrariando Bono Vox - , perdoar a dívida de países pobres não deveria fazer parte da «top list» de questões globais prioritárias. Senti alguma desilusão na atmosfera. A certo ponto, a argumentação já bastava. Retomei o slide em que surgiam os prémios de «default risk» de vários mercados emergentes. Terminei com duas citações de bibliografia. De seguida, a sala evacuou em menos de meio minuto. Para mim, tinha sido excelente.
Já no gabinete, um ficheiro de MP3 foi sucessivamente executado.
«One love
One blood
One life
You got to do what you should
One life
With each other
Sisters
Brothers
One life
But we’re not the same
We get to
Carry each other
Carry each other
One...life
One»
É o que faz uma paixão de 25 anos pelos U2. Mas? pela música.