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05 de Junho de 2012 às 23:30

Ser artista

Obama carrega às costas dois fardos pesadíssimos. O primeiro resulta da sua arrogante falta de gosto, do seu quase desprezo, pelo dia-a-dia da política, sem domínio do qual não é possível fazer obra legislativa nos Estados Unidos.

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As primeiras Selecções do Readers Digest de que me lembro em Portugal chegavam do Brasil e eu comprava-as ao domingo na feira de S. Pedro de Sintra, com páginas arrancadas aqui e além pela Comissão de Censura – a Segunda Guerra Mundial ainda não tinha acabado, a União Soviética era aliada dos Estados Unidos contra Hitler e títulos como "Os nossos amigos russos" ou "Rumo à vitória com o camarada Estaline" denunciavam leituras que o Dr. Salazar não achava boas para os portugueses. Ao fundo de cada artigo das Selecções, em caracteres mais pequenos, vinha sempre ou máxima moral, ou dito de espírito, ou historieta divertida. Uma era a do mendigo no adro da igreja, acenando com um bandolim e dizendo a quem chegava à missa: "Dêem-me uma esmolinha por amor de Deus que este bandolim é o meu único ganha-pão e eu não o sei tocar". Tenho-me lembrado muitas vezes dela desde que Barack Obama se tornou Presidente dos Estados Unidos.

A eloquência que hoje tragicamente falta à maioria dos chefes de governo dos dois lados do Atlântico Norte (mas floresce nalguns extremistas de esquerda e de direita), é um dos mais importantes dons da tradição política ocidental e Obama têm-na a rodos - o que muito o ajudou a conquistar corações e a ganhar a eleição de 2008. Mas uma coisa são campanhas eleitorais, outra é o exercício do poder. Aí, Obama carrega às costas dois fardos pesadíssimos. O primeiro resulta da sua arrogante falta de gosto, do seu quase desprezo, pelo dia-a-dia da política, sem domínio do qual não é possível fazer obra legislativa nos Estados Unidos. Esse fastio levou-o por exemplo a delegar nos democratas do Congresso a defesa, palmo a palmo, do seu plano de saúde que, sem empurrão presidencial permanente, acabou por ser aprovado em versão muito empobrecida e à mercê do que o Supremo Tribunal sobre ele vier a decidir. O segundo vem da sua mania do consenso - ao qual parece atribuir virtude. Desperdiçou maioria inexpugnável no Senado (que entretanto perdeu) e boa vontade pública quando entrou na Casa Branca, ao querer constantemente encontrar plataformas de acordo com os republicanos – que, fosse como fosse, não estavam nem estão interessados em entenderem-se com ele – abrindo cada vez mais, em Washington, o fosso que queria fechar. Não deve conhecer o dito de Margaret Thatcher: "Se os Apóstolos tivessem saído à rua a pedir consenso a gente hoje nem sequer saberia que tinha havido cristianismo". Ou talvez conheça e ache a Senhora cínica.

Se ganhar a Mitt Romney – um grande "se" se a economia americana continuar a não melhorar e se, entre a Cila grega e a Caribdis alemã, a Europa chegar à bancarrota – talvez tenha aprendido e com Congresso mais de feição possa deixar obra à altura da sua visão retórica.

Se não é pena porque Obama é artista – faz uns discursos que são um enlevo, diria o meu chorado amigo Inácio Marcão. Para mando duradouro em política, porém, ser artista é condição necessária, mas não é condição suficiente.



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