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11 de Outubro de 2005 às 13:59

Sementes de esperança

O grupo de Madre Teresa é um projecto português, que alimenta semanalmente mais de 500 almas em Joanesburgo, cidade do ouro sul-africana. De carrinha leva-lhes sopa, agasalhos e medicamentos. A chuva cai de mansinho na noite,...

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A chuva cai de mansinho na noite, abraçando a cidade como um beijo de veludo negro. Gina conduz a carrinha pelos recantos mais obscuros. Redutos de miséria e de crime, onde raros são os que se aventuram, e muito menos mulheres, como aquelas, que todas as terças-feiras trocam a fome por carinho. A dor, por esperança na humanidade. Gina Louro só tem 31 anos, mas desde os 16 - mais de metade da sua vida - que sorri nesta cruzada, indiferente aos perigos da entrega.

«Quem viaja com Deus não tem que ter medo!» – assegura ela, sorridente, enquanto engrena nova mudança e buzina para chamar os seus meninos, como chama às sombras, que se erguem da cama, dos nossos desperdícios, assim reciclados.

O Verão tarda em largar-nos, desenhando o que o Homem vai preparando para si, e para o resto dos seres vivos, ao consumir o planeta como um cigarro.

Paulatina e inexoravelmente sugado de brasa em cinza.

O grupo de Madre Teresa é um projecto português, que alimenta semanalmente mais de 500 almas em Joanesburgo, cidade do ouro sul-africana.

De carrinha leva-lhes sopa, agasalhos e medicamentos.

A lua reflecte-se na fachada de vidro de um dos maiores grupo diamantíferos do Mundo, deixando a nu os bandos de mulheres, homens e meninos que por ali vegetam, a coberto da noite.

Gina volta a tocar a buzina e vai alinhando, numa fila, estilhaços da nossa consciência, que só nos roçam, por instantes, aos domingos. No entoar do missal.

«São cada vez mais senhor Mateus. São cada vez mais! E dantes só havia negros... agora veja... cada vez há mais brancos» – frisa a «mãe» do projecto.

Do passeio, arrasta-se um volume que a chama, pelo nome, em inglês: «mamã Gina!»...

E eu sinto um arrepio, como se o tempo parasse. Pintando-nos, a todos, de vergonha por nos consumirmos tantas vezes, quase sempre, em egoísmos menores, cujas migalhas, saciariam este desvario.
Eu sinto o olhar dela a seguir-me a atenção. «O Jonas é um amigo especial!» explica Gina, enquanto ampara o negro e lhe estende um copo de sumo e uma tigela de sopa.

«Um dia encontrámo-lo debaixo de uma ponte, a gemer de dores. Aos poucos acabou por deixar que lhe visse os pés, no meio dos sapatos podre. Estavam a gangrenar. Pediu que o levasse a um médico e assim fiz».

«Mas quando chegámos ao Baragwanath (mega hospital da cidade negra do Soweto), queriam amputar-lhe os dois pés», explica-me a Gina olhando para aquele «quase ser humano», assim esvaziado pela nossa indiferença.

«Ele agarrou-se a mim e pediu-me que não os deixasse. Preferia morrer, se assim tivesse de o ser, a perder os pés. Que o levássemos de volta para onde o encontráramos. «E foi o que fiz. Dei-lhe uns analgésicos, um cobertor e comida e fui para casa dormir. Mas, depois, nunca mais conseguia pegar no sono, a pensar neste homem».

«E assim voltei à rua. Fui à procura dele e encontrei-o onde o deixara. Primeiro tirei-lhe as larvas que já o infestavam e, todos os dias fui lá desinfectá-lo até que lhe salvámos os pés. Só perdeu os dedos».

Gina repara na minha expressão incrédula e desafia, agora em inglês, para compreensão do Jonas; «Peça-lhe que lhe conte o que se passou...».

O negro prega-me na minha cruz com uns olhos negros enormes, antes de me fazer descer, com um sorriso meigo; «A Gina é a minha mãe... ela salvou-me os pés!»... e faz menção de lhe beijar a mão que ela retira com uma brusquidão carinhosa.

«Vá lá. Deixa-te de patetices!» – e fica a ver aquele ser, «ressuscitado» homem, ir sentar-se na borda do passeio, sorvendo a sopa quente, de cozido português, antes de voltar à estrada.

Novo quarteirão. Nova buzinadela, a chamar os seus meninos. Desta vez chegam também prostitutas que assim se assumem, ao falar com Gina.

Não procuram sopa. Apenas devolver-lhe o que esta espalha pelo Mundo.

Parte da jorna da noite, para comprar mais sopas, mais agasalhos, para os que sobram do nosso Mundo. Num abraço, solidário. Sementes de ternura.

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