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07 de Setembro de 2007 às 13:59

RAUL SOLNADO: A PRESENÇA DA GRANDEZA

Em Portugal as pessoas são tomadas como peças perecíveis, desmerecidas e descartáveis. Atingem uma certa idade e, ao invés do respeito, da consideração, e, em muitas circunstâncias, admiração, são sujeitas a vexames e humilhações inacreditáveis. Conheço v

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O último ocorreu entre a direcção de programas da RTP e o grande comediante Raul Solnado. O caso  deu origem a duas entrevistas com o actor, uma em 19 de Agosto, p.p., na revista do «Diário de Notícias», outra na última página do mesmo matutino, no dia 2 de Setembro último.

Revela Raul Solnado: «Propus um programa de ‘talk show’, chamado ‘Amores Perfeitos’, à RTP e esta aceitou. Isto em Novembro de 2005, mas nunca chegou a ser assinado contrato. Estiveram este tempo todo a cozinhar-me em azeite (?) O Nuno Santos disse-me que adorava a ideia, aceitou-a, falámos até com o Nuno Artur Silva, das Produções Fictícias, mas nunca mandaram o contrato. A determinada altura, após mais de um ano, e depois da troca de dez ou doze e-mails, disse que estava desmotivado, e que dava sem efeito o contrato verbal, mas o Nuno Santos pediu-me desculpa, pediu-me que reconsiderasse, e disse-me que, em breve, se fecharia o contrato. Passou mais de um mês e nada?»

A narrativa de Solnado, por atingir o grau do surpreendente, originou uma onda de indignação. Este país deve alguma coisa ao admirável criador de numerosos momentos de felicidade. Sei, até por experiência própria, que as virtudes da gratidão e da justiça estão há muito esquecidas ou deliberadamente ignoradas por uma casta que não tem outra importância senão aquela que momentaneamente se lhe dá.  Em que domínios a grandeza se revela? Ensinamos antigos que nos domínios do reconhecimento, outra forma de gratidão e de justiça. 

A amnésia histórica, como propósito ideológico de remover qualquer parcela do passado que tenha direito à projecção no presente e no futuro, foi criada exactamente para dar a ideia que antes de nós, nada existiu de relevante. Em todos os sectores da sociedade portuguesa a avalanche de oportunismo varreu padrões, arrasou princípios, aniquilou regras. Mas também é verdade que ao tornar pública a afronta a Raul Solnado, o «Diário de Notícias» originou o protesto indignado de dezenas de leitores.

Por outro lado, Emídio Rangel, na coluna de subscreve, semanalmente, no «Correio da Manhã», não escondeu [1 de Setembro, p.p.] a indignação que o assunto lhe causou. Escreve: «Há coisas que não se fazem a ninguém. Por educação, por civilidade. Por exemplo, não se pode manter alguém em «banho-maria», um ano e nove meses, à espera que se cumpra o contrato verbal firmado entre as partes. Se isto não se faz a ninguém, muito menos se faz a Raul Solnado. A RTP, numa postura manhosa e irresponsável, ousou ferir, humilhar, amachucar uma personalidade que deu tudo o que tinha àquela casa. A RTP tem 50 anos de vida. Solnado tem 50 anos de dedicação à ingrata televisão do Estado. Solnado é um príncipe, um homem de rara envergadura intelectual, um grande humorista, que andou a vida inteira de cabeça levantada. Solnado é um actor sublime, grande apresentador de televisão».

Subscrevo, por justos e rigorosos, os qualificativos utilizados por Emídio Rangel. Na história da RTP não há momentos de glória e de inventiva como o «ZipZip», a «Visita da Cornélia», ou essoutro programa tão esquecido como inigualável, o «Faz de Conta», no qual o imenso artista improvisava, em segundos, diálogos e criações incomparáveis, situações hilariantes sem nunca deixarem de ser críticas de costumes e observações inteligentes acerca da actualidade nacional.

Mas Solnado, durante a Guerra Colonial, teve a coragem inaudita de criticar todas as guerras, todas as violências, todas as selvajarias, todas as iniquidades através de uma imaginação sem limites -  a não ser os limites impostos pela boa educação, pela decência e pelo respeito devido ao público. Há, neste homem, uma peculiar visão do mundo, com a qual se tem esforçado por reduzir o mal à categoria de epifenómeno, exactamente porque acredita nas infinitas possibilidade do ser humano.

O seu interesse pelo homem, pela singularidade da nossa condição advém de um conhecimento que a experiência transformou em consciência moral. Quando afirma estar «magoado» ele não refere, apenas, o valor negativo que a expressão comporta: assinala a dimensão do desprezo que pode atingir, nos dias de hoje, qualquer outro homem   -  desde o homem vulgar, até àquele que, mercê das circunstâncias, se tornou notório ou famoso. E nesta verificação reside, porventura, a parte mais dramática do caso: não se trata de falta de consideração  -  é, isso sim, falta de respeito.

Estamos perante uma situação que podemos generalizar até à zona do acontecimento. Raul Solnado foi envolvido na insânia de uma época, cujos comportamentos e acções mais não são do que o banal prolongamento de um modo de viver tão abstruso como absurdo. Ninguém escapa á infâmia das políticas larvadas. Nem mesmo aqueles que as provocam. A «mágoa» de Solnado constitui um impressionante testemunho daquilo que não é colocado ao serviço da esperança, da gratidão, da admiração e do respeito.

Talvez, agora, façamos a descoberta vertiginosa de que as enunciações aqui e ali registadas se entendam não como meros sinais de aviso, sim como sintomas alarmantes de uma época desgraçada porque desprovida de sentimentos, além de alienada até nos seus propósitos.

As pungentes declarações de Raul Solnado reafirmam que a agressão moral não se esconde numa vaga estrutura semântica. O desprezo está aí. O desprezo anda por aí. O desprezo toca ou vai tocar no batente de todos nós. E o irreparável não é, apenas, coisa dita ou coisa que se vai dizer. Quando a jornalista do «Diário de Notícias» lhe pergunta sobre o que está na origem do despautério, Solnado responde: «Talvez porque concluíram que eu não seria a pessoa indicada para apresentar; talvez porque quisessem uma pessoa mais nova. Podiam ter sido frontais e dizê-lo. Foram cobardes, não tiveram coragem de me dizer isso e andaram a arrastar-me». A resposta comporta o peso insustentável de uma acusação, e a relação muito profunda entre a génese do que se entende por «novo» e a declinação do que se compreende por «velho».

Uma vez ainda o grande Raul Solnado transformou uma conjuntura numa conjectura. Impelindo-nos a pensar sobre que sociedade estamos a construir, que homens estamos a fabricar, que destino procuramos. E, sobretudo, que sonhos estamos a destruir, quando assassinamos as nossas melhores, mais belas e mais asseadas memórias.

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