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09 de Julho de 2003 às 11:18

Quantos anos de desapontamento

A semana que passou ficou marcada, em termos económicos, pela divulgação do “estado da economia portuguesa” pelo Governador do Banco de Portugal, isto é, como evoluiu a economia em 2002 e as...

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A semana que passou ficou marcada, em termos económicos, pela divulgação do “estado da economia portuguesa” pelo Governador do Banco de Portugal, isto é, como evoluiu a economia em 2002 e as perspectivas para 2003 e 2004. Depois de um crescimento real de 0,4% no ano passado, o Dr.

Vítor Constâncio revelou que espera uma contracção do PIB entre 0% e 1% em 2003 e uma ligeira retoma do crescimento em 2004, prevendo um intervalo de 0% a 2%.

Retoma mais acentuada só mesmo lá para 2005, quando os balanços dos endividados agentes privados (famílias e empresas) estiverem mais “limpos” (isto é, não tão endividados). Isto, claro, admitindo que a economia internacional dará, entretanto, a volta (o que tem vindo a ser sucessivamente adiado).

Ora, penso que ao traçar este cenário para os próximos anos, o Dr. Vítor Constâncio peca por ser optimista. Na verdade, penso que podemos estar a atravessar um período depressivo a nível mundial (com recessão ou baixo crescimento) que, à semelhança do período de vigorosa expansão vivido nos oito a dez anos anteriores a 2001, poderá ser bastante longo.

E, claro, se a economia mundial registar um comportamento decepcionante nos próximos (largos) anos, não devemos esperar, igualmente, dias fáceis para Portugal. Procurarei neste artigo explicar por que julgo que os dias complicados estão para ficar por mais tempo do que hoje a maioria dos economistas/analistas espera.

Comecemos pelas condições internas. O principal problema da economia portuguesa é o endividamento dos agentes privados, quer famílias, quer empresas, motivado pela vertiginosa descida das taxas de juro no processo de adesão ao euro. De facto, de um valor de pouco menos de 90% do PIB em 1995, passámos, em 2002, para quase 150%, fruto, sobretudo, da explosão do crédito à habitação (mais do que do crédito ao consumo) e do investimento realizado pelas empresas.

Isto levou o défice externo do país a atingir valores altíssimos, por qualquer padrão utilizado, o que não teve consequências na esfera financeira, como tinha sucedido no passado, porque o país aderiu à Zona Euro.

Mas, tratando-se de endividamento, não poderia deixar de ter, forçosamente, consequências sobre o lado real da economia, pois a subida tinha sido vertiginosa, tendo deixado os agentes privados com menos recursos para consumir e investir.

É esta a conjuntura que vivemos, com as famílias e as empresas a ajustarem os seus balanços (leia-se, a terem que pagar as suas dívidas) e o Estado a nada (ou muito pouco) poder fazer para alterar a situação, fruto da política orçamental erradamente expansionista seguida entre 1997 e 2001, quando a conjuntura interna e externa aconselhava a outro tipo de actuação.

E, no que toca a condições internas, o meu pessimismo só não é maior porque o actual governo tem, de facto, vindo a fazer o “trabalho de casa” que se impunha, depois de todo o diálogo (sem acção...) dos anteriores governos.

E isto, nas mais diversas áreas: não são só as contas públicas que estão a ser colocadas em ordem – é o novo código laboral, é a reforma da administração pública, é o plano de acção para a sociedade de informação (que visa a massificação da utilização da Internet e das tecnologias de informação na administração pública), é a nova lei de bases da educação, é a reforma da segurança social, é a desburocratização da justiça, é reforma da tributação do património imobiliário, é a prometida descida da taxa de IRC já em 2004 e do IRS até ao fim desta legislatura, enfim, todo um conjunto de medidas que visa, de facto, dotar a economia portuguesa de maior competitividade, eficiência e justiça.

O problema é que não nos podemos esquecer que este governo só tomou posse em Abril de 2002 e que, portanto, mesmo tendo já mexido, ou estando a mexer nestas áreas, é ainda cedo, muito cedo, aliás, para que os efeitos positivos comecem a ser sentidos. Na educação, por exemplo, antes de 10 a 15 anos, é difícil que tal suceda; já na fiscalidade ou na administração pública os efeitos poderão ser sentidos num prazo bem mais curto.

O problema é que, como já defendi em textos anteriores, a este governo foi deixada uma herança bem pesada: uma economia acomodada, pouco eficiente e altamente endividada.

Ora, se pensarmos, por exemplo, que no endividamento das famílias, cerca de 80% resultam do crédito à habitação, que em média se prolonga por um horizonte superior a 20 anos, é fácil de ver que o ajustamento dos balanços dos agentes é bem capaz de ser mais moroso do que se tem referido.

E mesmo que o défice externo esteja a ser reduzido extraordinariamente ano após ano, trata--se de um fluxo que aumenta menos todos os anos, mas que continua a fazer crescer o “stock” de endividamento.

Tudo somado resulta que apesar de ser uma pequena economia aberta, e como tal, sempre muito dependente do que se passa no exterior, Portugal vê reunidas as condições internas para crescer abaixo da média da União Europeia nos próximos anos, como já sucede desde 2001.

Se a Europa crescer a 3 ou 4%, Portugal crescerá a 2 ou 3%; se a Europa crescer entre 0 e 1%, como parece ser o caso para este e os próximos anos, como veremos já de seguida, é de considerar o cenário de o nosso país poder registar crescimentos negativos.

Vistas as condições internas, que infelizmente não são nada optimistas, passemos à conjuntura internacional – onde também infelizmente as notícias não são boas.

Já há quinze dias escrevi sobre a situação preocupante que a maior economia mundial, os Estados Unidos da América, vivem.

Depois de, a seguir a 1993 se terem constituído claramente como a locomotiva que puxou o mundo em termos de crescimento económico, os EUA não dão mostras de poderem voltar a ter este papel em breve. Se a isto aliarmos a situação da economia europeia e do Japão, cujo comportamento tem sido decepcionante, sobretudo no caso da economia nipónica, percebe-se que teremos que esperar algum tempo para voltarmos à pujança que a economia mundial demonstrou nos oito anos anteriores a 2001.

Na semana passada, Martin Wolf, um dos mais prestigiados colunistas do conceituado “Financial Times” escrevia de forma clara que podemos estar já a viver um período, que pode ser longo, de crescimento decepcionante a nível mundial – um período que poderá muito bem chegar quase a uma década, como o longo período de forte crescimento até 2000, inclusive.

Primeiro, foi o rebentamento da bolha especulativa no mercado accionista no início de 2000; depois, os escândalos da contabilidade criativa em algumas das empresas supostamente mais sólidas e que constituíam verdadeiras referências mundiais; a seguir, os ataques de 11 de Setembro de 2001, a crise argentina, a guerra no Iraque, o síndroma agudo de deficiência respiratória (vulgo gripe asiática, ou pneumonia atípica).

Enquanto isto, as taxas de juro foram caindo em todo o mundo (ainda há quinze dias, nos EUA, a principal taxa directora foi reduzida para 1%, o valor mais baixo em quase 50 anos; na semana passada foi o banco central sueco que desceu a sua principal taxa directora e não seria surpreendente que o banco central europeu descesse novamente as suas taxas directoras em breve), mas a verdade é que estas notícias já são recebidas com relativa indiferença pelos agentes, pois até agora os efeitos quase não se sentiram... Não, o problema é mais profundo e por isso demorará mais tempo a ser resolvido.

O forte crescimento dos mercados accionistas nas segunda metade da década de 90, motivado sobretudo pelo forte advento das novas tecnologias, levou a que muitos agentes se tivessem endividado para financiar os seus investimentos, para os quais esperavam retornos elevados. Ao mesmo tempo, essa revolução tecnológica levou a que as empresas tivessem que efectuar avultados investimentos, de modo a tornarem-se mais eficientes e competitivas.

E a “exuberância irracional” parecia não o ser até ao início de 2000, quando se tomou consciência que as avaliações produzidas até então podiam não ter sido feitas da forma mais correcta.

E, claro, os investimentos do sector produtivo também não iriam continuar a crescer fortemente para sempre – afinal, as novidades e inovações estruturantes não surgem todos os anos...

O quadro em anexo ilustra este cenário, mostrando com clareza os retornos anuais de alguns mercados accionistas mundiais entre 1993 e 2003: fortes ganhos até 1999; forte recuo a partir de 2000.

Tudo isto conjugado levou a que os agentes privados (famílias e empresas) se tivessem visto, num curto espaço de tempo, numa posição de endividamento sem paralelo no passado. Mais no caso das famílias, que se endividaram para investir na bolsa e com o crash (que foi mais forte do que o ocorrido em 1929...) viram o esperado efeito riqueza positivo transformar-se em negativo, continuando com os empréstimos por pagar; e mais nos EUA do que na Europa porque do lado de lá do Atlântico a exposição ao mercado accionista é muito mais elevada.

Os números não mentem: em 1995, nos EUA, o endividamento do sector privado rondava cerca de 90% do PIB, valor que deve ser comparado com os mais de 140% de 2001/2002 e os actuais mais de 130%. Analisando apenas as famílias, passou-se de cerca de 80% do rendimento disponível em 1995 para quase 110% em 2002; na Europa, no mesmo período, temos o seguinte retrato do endividamento dos particulares: em Portugal, de cerca de 50% para mais de 100% do rendimento disponível; em Espanha, de 30% para mais de 80%; na Holanda, de 90% para mais de 150%; na Alemanha, de 50% para mais de 110%; mesmo em França e Itália passámos, respectivamente, de cerca de 45% para quase 60%, e de 5% para pouco menos de 40% (os dados são dos bancos centrais destes países e também do banco central europeu). Estamos, pois, numa situação em que a falta de confiança é muito forte, seja nos consumidores, nos produtores, nos investidores ou no comércio. Além disso, os indicadores económicos persistem em não transmitir boas notícias: ainda na passada semana o desemprego de Junho nos EUA tornou a subir, para 6.4% da população activa, o valor mais alto dos últimos nove anos.

E a Comissão Europeia revelou que a retoma na Europa é, afinal, uma miragem antes de 2004. Mesmo assim, e de acordo com o que atrás expus, penso que Comissão Europeia, tal como o Banco de Portugal, está igualmente a ser optimista.

A correcção dos níveis de endividamento em curso encontra-se longe de estar concluída, quer para famílias, quer para empresas, daí que também os estímulos provocados pela descida das taxas de juro estejam a produzir efeitos muitos limitados, se é que produzem efeitos de todo... e é por isso que o mundo não pode contar com o sector privado dos EUA para sustentar o crescimento mundial, como sucedeu na segunda metade dos anos 90, tal como, no actual estado de coisas, não se pode contar nem com a Europa, nem com o Japão. Assim, depois dos fantásticos anos 90, a primeira década do novo século pode revelar-se anémica em termos de crescimento.

E mais ainda em Portugal, onde a acção positiva do governo em diversas áreas demorará tempo a produzir efeitos, dada a pesada herança recebida da anterior governação – para além de que, fruto do elevado peso do crédito à habitação nas dívidas totais das famílias, o prazo do endividamento é, em geral, mais elevado do que no resto da Europa. Ah, e claro, mesmo que a economia mundial mostre sinais de retoma, aí é a vez das taxas de juro subirem...

Não, realmente, não consigo estar optimista em relação aos anos que aí vêm...

Miguel Frasquilho, Economista

Miguelfrasquilho@yahoo.com

Artigo publicado no Jornal de Negócios

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