Opinião
Quando o incorrecto se torna "fashion"
Houve época em que era feio ser politicamente incorrecto. Hoje, o que de mais politicamente incorrecto se pode cometer é apelar à correcção política. A ditadura do politicamente correcto – precisamente por ter pretendido impor-se como ditadura – deu lugar
A Dolce&Gabbana bem o sabe, e não terá sido sem cálculo que, nas fotografias que lançam a sua última colecção, pôs uma mulher deitada no chão, aparentemente subjugada por um homem, ambos observados por outros quatro homens, no que parece ser o princípio de uma cena de estupro colectivo. Impacto, polémica, falem mal mas falem de mim. Organizações feministas reclamaram, a Amnistia Internacional denunciou, e até um obscuro cronista português se pôs a falar no assunto. O objectivo foi plenamente alcançado. A campanha pode ser considerada um sucesso!
Em Espanha, a Dolce&Gabbana retirou a campanha de circulação, mas não deixou de fazer o seu proselitismo, lamentando o "atraso" de Espanha e afirmando que aquilo "apenas é arte". Não é. É também comércio, negócio de muito dinheiro, e, por mais amor que os criadores e empresários italianos tenham à arte, não acredito que tenha sido em seu nome que fizeram a campanha do estupro. Quiseram divulgar a marca, apelaram para uma cena de impacto e conseguiram. E puseram mais uma pedrinha no caminhão de banalizações da violência.
Um desenho animado do South Park conta a história de uma comemoração de Natal politicamente correcta.
Para não ferir as confissões não-cristãs, foram retiradas todas as alusões a Cristo, para não ferir os ambientalistas, foram retirados os pinheiros, o pai Natal, por suspeita de pedofilia, foi banido, e até as estrelas ofendiam alguém e foram retiradas. A festa acabou por acontecer num ginásio completamente despido e, o que é pior, com um espectáculo do Philip Glass. Esse seria o mundo onde o politicamente correcto triunfasse. Um horror. Mas nem por isso o politicamente incorrecto e, particularmente, a estilização da violência, ganha, por si própria, o estatuto de "arte".
Tarantino estiliza a violência e faz arte. Dolce&Gabbana faz moda, publicidade e comércio. E se não apelasse ao politicamente incorrecto para fazer polémica e, com ela, alcançar notoriedade, a fotografia do estupro estilizado seria perfeitamente banal. Se nos abstrairmos da temática, o que vemos é uma fotografia convencional, com modelos convencionais, penteados por cabeleireiros convencionais, a vestir roupas convencionais e a fazer caras e bocas iguais às de qualquer outra fotografia de publicidade (não incluir nisto as que Oliviero Toscani – esse, sim, um artista – fez para a Benetton).
Já se dispensa a coragem para se ser politicamente incorrecto.
O incorrecto é "fashion". Perdeu a graça. E o mérito.
PS: Em Oeiras, o descalabro chegou a tal ponto que já há quem ponha cones para reservar o seu pedacinho de passeio público (leia-se estacionamento privado).