Opinião
Punks numa "democradura"
Porque, nas democracias, as vozes dissidentes fazem parte da paisagem polifónica, a música dos Sex Pistols foi usada na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e o tema "God Save the Queen", não exatamente um panegírico, faz parte da cultura britânica, sendo por ela assimilada sem sobressalto
Do ponto de vista da liderança e da mudança, um dos processos mais importantes do Verão passado, terá sido a condenação das russas Pussy Riot. A história é conhecida: três jovens mulheres de um coletivo punk foram presas por atuarem numa igreja de Moscovo e depois condenadas a dois anos de prisão. Como referia um edital do Financial Times, qualquer democracia teria eventualmente multado as prevaricadoras e o caso ficaria encerrado. Acontece que nem a Rússia é uma democracia normal, nem a relação dos cidadãos com a autoridade é o que já foi. Vamos então por partes.
O regime de Putin III sugere que a tese do fim da História, um mundo politicamente livre de surpresas e sobressaltos, era uma tese, digamos, otimista. A história, num certo sentido, é uma sucessão de surpresas que apenas deixam de o ser em retrospetiva. Aí, parecem fazer todo o sentido, sendo quase expectáveis. A Rússia atual constitui um espaço politicamente interessante, entre a necessidade de um Czar autocrático e forte, que monta a cavalo em tronco nu e mostra preocupações ambientais a bordo de um ultraleve, e a reivindicação de normalidade democrática reclamada por uma camada ultimamente vocal da população. Qualquer visitante de Moscovo pode facilmente perceber, aliás, a coexistência entre o presente global (nos shoppings extraluxuosos como o GUM) e o passado soviético (nas de resto impressionantes estações de metro). Neste cenário, Putin luta por parecer um líder político normal.
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Tal desejo cai por terra quando uma banda punk que ninguém conhece se torna o caso musical do Verão. Não pela sua música, que aliás é inexistente (quem já a ouviu?), mas pelo seu impacto político. E neste campo é interessante verificar como três raparigas ameaçam todo um poderoso edifício político, a ponto de levar um ministro a insultar Madonna além do imaginável.
Porque, nas democracias, as vozes dissidentes fazem parte da paisagem polifónica, a música dos Sex Pistols foi usada na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e o tema "God Save the Queen", não exatamente um panegírico, faz parte da cultura britânica, sendo por ela assimilada sem sobressalto. Na "democradura" russa três miúdas assustam o regime, concretizando finalmente e com várias décadas de atraso, o verdadeiro poder do punk. Bem-vindos a 1977!
Para saber mais sobre Putin:
Gessen, M. (2012). The MAN without a face: The unlikely rise of Vladimir Putin. London: Granta.
Professor catedrático, Faculdade de Economia, Universidade Nova de Lisboa
Texto escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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