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16 de Setembro de 2012 às 23:30

Punks numa "democradura"

Porque, nas democracias, as vozes dissidentes fazem parte da paisagem polifónica, a música dos Sex Pistols foi usada na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e o tema "God Save the Queen", não exatamente um panegírico, faz parte da cultura britânica, sendo por ela assimilada sem sobressalto

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Do ponto de vista da liderança e da mudança, um dos processos mais importantes do Verão passado, terá sido a condenação das russas Pussy Riot. A história é conhecida: três jovens mulheres de um coletivo punk foram presas por atuarem numa igreja de Moscovo e depois condenadas a dois anos de prisão. Como referia um edital do Financial Times, qualquer democracia teria eventualmente multado as prevaricadoras e o caso ficaria encerrado. Acontece que nem a Rússia é uma democracia normal, nem a relação dos cidadãos com a autoridade é o que já foi. Vamos então por partes.


O regime de Putin III sugere que a tese do fim da História, um mundo politicamente livre de surpresas e sobressaltos, era uma tese, digamos, otimista. A história, num certo sentido, é uma sucessão de surpresas que apenas deixam de o ser em retrospetiva. Aí, parecem fazer todo o sentido, sendo quase expectáveis. A Rússia atual constitui um espaço politicamente interessante, entre a necessidade de um Czar autocrático e forte, que monta a cavalo em tronco nu e mostra preocupações ambientais a bordo de um ultraleve, e a reivindicação de normalidade democrática reclamada por uma camada ultimamente vocal da população. Qualquer visitante de Moscovo pode facilmente perceber, aliás, a coexistência entre o presente global (nos shoppings extraluxuosos como o GUM) e o passado soviético (nas de resto impressionantes estações de metro). Neste cenário, Putin luta por parecer um líder político normal.

Tal desejo cai por terra quando uma banda punk que ninguém conhece se torna o caso musical do Verão. Não pela sua música, que aliás é inexistente (quem já a ouviu?), mas pelo seu impacto político. E neste campo é interessante verificar como três raparigas ameaçam todo um poderoso edifício político, a ponto de levar um ministro a insultar Madonna além do imaginável.

Fenómenos com as Pussy Riot em Moscovo, as manifestações contra a lei que suportam a existência de crimes lesa-majestade na Tailândia e outros fenómenos equivalentes, mostram que o processo de liderança é cada vez mais moldado pelos seguidores. As punks iconoclastas de Moscovo, como lhes chamava o Financial Times, vêm apenas revelar que num mundo ligado por novas tecnologias de comunicação, a ideia de que se pode controlar a situação controlando a comunicação, como Putin terá aprendido no KGB, se tornou obsoleta. A sua resposta ao minuto punk das Pussy Riot, tal como a resposta do regime bielorusso ao lançamento de ursos de peluche com palavras pós-democracia por uma avioneta pilotada por suecos - a expulsão do embaixador daquele país em Minsk – mostra, pelo menos, duas coisas. Que nem a História chegou ao fim nas fronteiras do leste europeu, e que nem todos os líderes do continente perceberam que os cidadãos cada vez menos se remetem aos papéis de obediência que eles ainda lhes querem reservar.

Porque, nas democracias, as vozes dissidentes fazem parte da paisagem polifónica, a música dos Sex Pistols foi usada na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e o tema "God Save the Queen", não exatamente um panegírico, faz parte da cultura britânica, sendo por ela assimilada sem sobressalto. Na "democradura" russa três miúdas assustam o regime, concretizando finalmente e com várias décadas de atraso, o verdadeiro poder do punk. Bem-vindos a 1977!

Para saber mais sobre Putin:

Gessen, M. (2012). The MAN without a face: The unlikely rise of Vladimir Putin. London: Granta.

Professor catedrático, Faculdade de Economia, Universidade Nova de Lisboa

Texto escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico


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