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Problema ou oportunidade?

O meu conhecimento de África é muito limitado. Passei duas semanas em S. Tomé em 1986 e fiquei fascinado por África. Algum tempo mais tarde era produzido o Out of Africa e, mesmo sem conhecer a savana, foi-me fácil perceber a mística do filme.

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Para além disso, só conheço Luanda e Maputo num raio que não excede os 2 km em qualquer das cidades, quase sempre de carro e com motorista. De Cabo Verde conhecia a ilha de S. Vicente, razoavelmente, mas o Mindelo é uma cidade cosmopolita, berço de Cesária Évora e de Bau, que atrai imensos melómanos estrangeiros.

Quando se confirmou que esta edição do curso que leccionamos em conjunto com o ISCEE tinha lugar na cidade da Praia fui alertado para uma realidade mais complexa. Muitas casas estão inacabadas, o ordenamento urbano deixa muito a desejar, com prédios ao lado de vivendas ou a roubar-lhes a vista do mar, como se isso fosse um bem escasso. As estradas são construídas com paralelepípedos de pedra em vez de alcatrão e provocam imensa vibração. Também não era exactamente necessário estar numa capital africana para encontrar um nível de planeamento urbano deficitário ou estradas de piso incómodo. Não tenho a certeza que qualquer destas características seja exclusivamente mérito local. Por outro lado a cidade é pobre e caótica e somos constantemente assediados por pedintes e miúdos que insistem em nos lavar o carro a troco de uns escudos.

Nos primeiros dias, recusei-me absolutamente a pactuar com esta economia paralela, sem qualquer contributo para o necessitado erário público. Provavelmente, trata-se de um bando de ociosos que poderia perfeitamente estar a trabalhar na construção civil apesar de, mesmo no auge do Inverno, a temperatura não ser nada convidativa. Devo admitir que nunca senti qualquer agressividade ou imposição. Eram mais vendedores de serviços com base em "marketing" directo que pedintes comuns.

Também não tive muita oportunidade para um contacto directo com o estilo de vida local. No primeiro dia fui jantar ao Poeta, um dos restaurantes de maior nomeada da cidade da Praia e, quando esperava comer sozinho, encontrei um antigo colega de turma que integrava uma equipa de empreendedores com uma visão muito positiva do potencial de desenvolvimento de Santiago. Os dias seguintes foram muito ocupados com o curso e fui acompanhado pelos participantes e organizadores. 

Quando baixei drasticamente a guarda foi no sábado, após uma aula mais comprida, que decorreu durante toda a manhã. Sentia-me com disponibilidade e interesse em conhecer melhor a culinária e estilo de vida local, de preferência indo a um restaurante frequentado predominantemente pelos habitantes da cidade da Praia.

Estacionei em frente ao restaurante Beramar-Grill-PexediTerra, não duvidando da origem marítima do peixe. Ali não há, de certeza, peixe de rio. Fui imediatamente abordado por um jovem dos seus 18 anos que me perguntou se podia lavar o carro. Confesso que não fiquei muito à-vontade porque tinha o portátil, com toda a documentação, em ficheiros e papel, na pasta respectiva, no lugar ao lado do condutor. No entanto, acedi e vi o serviço móvel de limpeza levantar os limpa pára-brisas do carro e partir com um grande balde vazio à ilharga. Penso que os limpa pára-brisas levantados são uma espécie de bandeira que assinala aos numerosos concorrentes que aquele cliente já está a ser servido.

Sentei-me na esplanada com vista para o mar e encomendei um Peixe – serra grelhado, uma opção muito aceitável. A refeição chegou ao mesmo tempo que o especialista das limpezas que começou por lavar os vidros e a parte exterior do carro. No entanto, quando voltei a olhar, as portas estavam todas abertas e os tapetes mergulhados no balde para serem postos ao sol logo de seguida. Tinha carregado mal no comando electrónico da chave e o carro ficara aberto ?

Confesso que senti algum pânico, mas mantive-me estoicamente a acabar a minha refeição. Só passado um bocado fui casualmente acompanhar a árdua tarefa e dizer que também não era preciso tanto rigor – eu até nem tinha pensado na limpeza de interiores. Mas deixei ficar o computador onde estava.

Por agradável coincidência, os tapetes ficaram enxutos exactamente quando eu estava a tomar café. Dirigi-me ao carro e perguntei quanto é que devia pela limpeza. "São 300 escudos (cerca de três euros, porque o escudo de lá vale o dobro do nosso antigo escudo) porque lavei o carro por fora e por dentro. Como pode ver, a sua pasta está no mesmo sítio. Da próxima vez, não se esqueça de trancar o carro!" 

Quando analisamos os "rankings" de acordo com a sua atracção do investimento estrangeiro, os países africanos vêm quase sempre no fundo da tabela. Talvez com alguma injustiça e falta de visão é vulgar considerarmos que esta situação é irreversível. Como Jeffrey Sachs, economista de Harvard, tem vindo a afirmar nas últimas duas décadas, o Continente Africano ainda vai tornar-se uma surpresa muito interessante. O problema é que, geralmente, só nos apercebemos quando as oportunidades já foram exploradas.

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