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Opinião
18 de Agosto de 2003 às 10:31

Porque é que as crises financeiras se repetem?

A construção da democracia obedece a um processo gradual de limitação do poder pelo próprio poder, esvaziando o espaço para a arbitrariedade. É também isso que está em causa na reforma do processo orçamental.

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Manuela Ferreira Leite disse uma vez que gostava de vir a ser lembrada como alguém que ajudou a tirar o país de uma situação difícil.

Referia-se à crise orçamental que o seu Governo herdou, e que ela ajudou, com a colaboração do Banco de Portugal, a redimensionar mais adequadamente aos olhos da opinião pública.

É muito provável que a ministra das Finanças tenha já assegurada a satisfação dessa ambição. Não porque a crise esteja passada. Longe disso.

Mas, com tudo o que Ferreira Leite fez, ficou já para trás a sensação de impotência que a indisciplina financeira do Estado, insistentemente praticada na última governação socialista, inspirava ao país.

O monstro está longe de estar derrotado. Mas deixou de andar galhardamente à solta, e vive agora de rédea curta.

Ao poderoso “lobby” da função pública, um dos braços do monstro, Ferreira Leite impôs condições de moderação salarial a que ninguém estava habituado.

Pelo caminho, deu um passo na racionalização do regime de aposentação dos funcionários, dando um pequeno contributo para a melhoria da sustentabilidade futura da Caixa Geral de Aposentações. Contra o “lobby” dos autarcas, outro dos braços do monstro, incluiu o capítulo da Estabilidade na Lei de Enquadramento Orçamental, que suspende a eficácia da Lei das Finanças Locais na determinação das transferências para os municípios, ao mesmo tempo que lhes impôs estritos limites ao endividamento.

Perante a tendência gastadora dos seus colegas de Governo – uma tendência tão natural como a lei da gravidade – impôs-lhes no Orçamento de 2003 uma redução de 10% nos gastos de funcionamento.

E para que não se faça a injustiça de considerar que Ferreira Leite se limitou a blindar a panela de pressão da despesa pública, sem alguma vez ter agido para a controlar a prazo, refira-se que anunciou a reforma da administração.

Se tudo correr bem, mudará radicalmente a gestão dos recursos humanos, condicionando a progressão das carreiras ao mérito. O resultado de tudo combinado é ter a ministra criado, dentro e fora do país, a expectativa de que se iniciou, finalmente, um período de consolidação orçamental do lado da despesa.

Repetindo a receita com mais ou menos variações – moderação salarial, freios nas transferências e limites ao endividamento autárquico, mais pressão sobre os gastos de funcionamento dos ministérios – é bem provável que a expectativa se venha a mostrar fundada. Não há muito a inventar no Orçamento para 2004.

O que se espera de Ferreira Leite, porém, está muito para além da sua simples ambição de a recordarmos um dia como aquela a quem se deve a superação de mais uma crise. Pela nossa parte, gostaríamos de a recordar como alguém que, tendo pegado no país em plena ressaca de despesismo, aproveitou a disponibilidade dos portugueses para as reformas e criou condições para que as crises financeiras tenham, de futuro, muito menos probabilidades de acontecer.

O que gostaríamos de poder recordar um dia seria a ministra que não se limitou a cuidar das aparências e atacou alguns dos problemas de fundo – mais ou menos bem ocultados – e que comprometem a saúde financeira do Estado a prazo.

A enunciação das prioridades neste domínio não tem nada de extraordinário. Não há economista competente, qualquer que seja o seu mais ou menos confessado quadrante político, que não as enumere.

Em primeiro lugar, um tema que deixou de ser há muito o território opinativo exclusivo de Teodora Cardoso. É preciso reformar o processo orçamental, condicionando os orçamentos anuais a uma programação de médio prazo, pelo cumprimento da qual – sublinha Eduardo Catroga e Vítor Bento – os governos sejam responsabilizados na Assembleia da República.

A construção da democracia obedece a um processo gradual de limitação do poder pelo poder, esvaziando o espaço da arbitrariedade. É também isso que está em causa na reforma do processo orçamental. Em segundo lugar, é necessário assumir – como também lembrou recentemente Catroga em entrevista ao Jornal de Negócios – que o buraco financeiro do Estado, ou seja, a dimensão real da dívida pública, a melhor medida do problema, é muito superior àquela que tendemos a assumir. Entre outras coisas, porque há um sector empresarial público que acumula passivos da responsabilidade do Estado a um ritmo insustentável.

Em terceiro lugar, um outro buraco, com consequências muito para lá da expressão financeira: o combate à fraude e evasão fiscal é também um combate pela moralização da sociedade. Um ano de governo depois, se alguma destas frentes mereceu alguma atenção por parte de Ferreira Leite, ninguém deu por isso.

Mas do combate com êxito nestas frentes depende não estarmos daqui a uns anos a pôr a mesma questão: porque é que as crises financeiras se repetem e há problemas de fundo que nunca ninguém resolve?

Jorge Campos da Costa, Readactor Principal

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