Opinião
Pedro B. da Camara: «O papel do salário mínimo nacional»
Hoje, passados quase 30 anos sobre a institucionalização do salário mínimo, valerá a pena fazer um balanço sobre o seu papel no reforço da coesão social em Portugal.
O salário mínimo foi apresentado ao país como uma das conquistas do 25 de Abril, tendo como objectivo expresso assegurar aos trabalhadores por conta de outrem (inicialmente, só no comércio, indústria e serviços) uma remuneração digna, que lhes permitisse cobrir as suas necessidades de subsistência.
Destinava-se, sobretudo, ao estabelecimento de uma rede de protecção mínima para aqueles que tinham menor capacidade reivindicativa e tinha também implícita a ideia de, através deste mecanismo, atenuar a desigualdade na distribuição de rendimentos no país.
A existência e actualização periódica de um salário mínimo nacional veio a ter consagração constitucional, no art. 60 nº 2 (a) da nossa Constituição, sendo estabelecidos os seguintes critérios de actualização do seu quantitativo: as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento.
Hoje, passados quase 30 anos sobre a sua institucionalização, valerá a pena fazer um balanço sobre o seu papel no reforço da coesão social em Portugal.
O resultado desse balanço não é brilhante.
Quando foi criado, em 1974, com um valor de Esc. 3.000$00 teve um impacto positivo directo no rendimento mensal de cerca de 20% da população activa.
O reverso da medalha é que tal efeito não teve contrapartida, em termos de produtividade, e ajudou a alimentar uma taxa de inflação que, nesse ano, foi de 27,97%.
E, a partir do ano da sua criação, nunca mais o salário mínimo recuperou o seu poder aquisitivo.
Na verdade, as suas sucessivas actualizações estiveram quase sempre abaixo da taxa de inflação do ano anterior, com especial destaque para épocas de crise mais aguda, como 1976 e 1982.
Só a partir de 1995 se inverteu ligeiramente essa tendência e, entre esse ano e 2001, o salário mínimo cresceu a taxas superiores à variação do Índice de Preços no Consumidor (IPC), apurada pelo INE.
Mas, no final de 2001, momento em que nos despedimos do escudo, o salário mínimo era de Esc. 67.100$00, o que representava, a preços constantes, uma desvalorização de 37% face a 1974, ano da sua criação.
E não se vislumbra que, nos tempos mais próximos, essa tendência de desvalorização se venha a alterar.
Ocorre, pois, perguntar se o exercício anual de negociação da sua revisão, na Concertação Social, é um mero ritual ou se tem algum alcance prático.
Estima-se que o salário mínimo ainda seja praticado para cerca de 10% da nossa força de trabalho, pelo que o seu valor tem um impacto real no bem estar de centenas de milhar de pessoas.
E o seu valor que, para 2003, foi fixado em € 356,60, para o regime geral, é um referencial importante em muitos mais casos.
Recorda-se, por exemplo, o compromisso do actual Governo em fazer convergir, no período da presente legislatura, as pensões mínimas com o seu valor.
A questão seguinte é, naturalmente, a de perceber porque se tem degradado tão significativamente, ao longo dos anos, se afecta ainda tanta gente.
E aí a resposta já seria mais complexa.
Por um lado, parece indiscutível que isso teve a ver com alturas de crise económica e taxas de inflação muito elevadas – recorda-se que entre 1974 e 1984 a inflação foi sempre de dois dígitos e, em nove desses 11 anos, superior a 20% – e que a reposição do poder de compra do salário mínimo iria induzir ainda mais inflação, se não acompanhada de ganhos de produtividade, que eram improváveis nos segmentos da força de trabalho em que tinha impacto directo.
Por outro lado, a redução do poder de compra do salário mínimo tem a ver com a clientela que é por ele afectada.
Na verdade, estamos a falar de trabalhadores não qualificados ou semi-qualificados, empregadas domésticas e similares.
Ora, a capacidade reivindicativa destes grupos profissionais é muito reduzida, porque raramente podem pôr em risco o normal funcionamento de empresas ou outras entidades patronais e são facilmente substituídos, se tal for necessário.
E também não constituem clientela relevante para o movimento sindical, que poderia dar-lhes voz.
Para já, porque na generalidade dos casos não estão sindicalizados.
Depois, porque, ainda que o estejam, não têm o peso e a importância de outros grupos profissionais mais qualificados, que são o esteio da generalidade dos sindicatos e que poderiam ser limitados nas suas reivindicações, se existisse uma estratégia negocial tendente ao rebalanceamento das tabelas salariais através do encurtamento dos leques salariais, pela subida mais que proporcional dos salários mais baixos.
Uma estratégia dessas teria como moeda de troca uma maior moderação salarial nos escalões intermédios e do topo das estruturas salariais da contratação colectiva.
Podemos, pois, dizer que, hoje, para a generalidade da população activa o salário mínimo não é mais do que um referencial, tendo deixado de ser uma realidade sentida por 90% dos trabalhadores por conta de outrem.
O que quer dizer que, de 1974 para cá, a sua importância tem declinado consistentemente, à medida que tem melhorado o nível de vida dos portugueses.
Mas continua a desempenhar o papel de rede de segurança fundamental para os mais desfavorecidos – os não qualificados e os pensionistas.
É, pois, ainda, um factor de coesão social a que importa restituir o valor relativo, para ajudar a erradicar algumas das bolsas de pobreza com que Portugal se debate.
Por Pedro B. da Camara
Professor Universitário e Consultor