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Para que serve a arte?

Para quem não sabe sou artista. Desses que a língua portuguesa resolveu apelidar de plástico num epíteto que soa e fica mal.

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A designação é tanto mais equívoca quanto o tipo de arte em questão se relaciona sobretudo com a visão humana, tal como a música com a audição ou a poesia com a linguagem. Uma arte plástica seria pois mais apropriadamente a do tacto, uma espécie de escultura para cegos. Mas adiante.

Como artista é suposto trabalhar com a relação entre o estímulo visual e aquilo que esse estímulo desencadeia a nível cerebral. Vulgo representação.

O que a história tem revelado ser muito vago, pois desde o registo que nos ficou das cavernas até à arte de hoje são quase infinitas as interpretações possíveis. De qualquer forma tem ficado claro que o real é sempre uma fabricação e que toda a criação artística tem origem na ideia, e não na forma. O projecto sempre precedeu o objecto. O que levou artistas de todos os tempos a forçar deliberadamente a percepção sensorial, o visível, em nome do conceptual. Ora compondo fragmentos da realidade, composições, ora alterando esse mesmo real de forma a melhor revelar a ideia. Pense-se nas figuras de El Grego ou de Miguel Angelo, por exemplo. Ou seja, a arte visual sempre foi um exercício puramente mental. E isto é muito importante para se perceber onde estamos hoje.

No tempo da dita pré-história a arte tinha provavelmente como objectivo traduzir em concreto, isto é, em visível e gráfico, determinados padrões cognitivos que dificilmente podiam ser expressos na rudimentar linguagem de então. Mecanismo que ainda hoje se mantém, pois de que outra forma, senão através da arte, é possível comunicar com algum rigor o medo ou o amor? As pinturas rupestres seriam assim visualizações de contorno mágico associadas à sobrevivência, física e sexual, da espécie.

Depois com a complexidade societária vieram as religiões, as ideologias e as utopias. Através dos tempos a arte foi-se adaptando à necessidade de criar imagens simbólicas lá onde o campo do real visível era parco em informação útil. A abstracção não parou de crescer. Até que no início do século XX a arte tornou-se ela mesma abstracta, ou seja, deixou de ser uma representação de qualquer coisa para se tornar numa presença de si mesma, numa coisa do nosso mundo, tão enigmática quanto o resto.

Foi uma ruptura extraordinária. Ao libertar a arte de qualquer representação do mundo exterior, o abstraccionismo abriu o incomensurável campo da imaginação à prática artística. Depressa tudo se tornou possível. E desde Marcel Duchamp qualquer coisa pode ser designada por arte desde que seja apresentada no contexto apropriado, um Museu, uma Galeria de Arte, uma colecção.

Mas esta grande abertura produziu afinal um enorme fechamento. A prática artística, virada essencialmente para simesma, tem-se vindo a tornar cada vez mais auto-referencial, mostrando-se incompreensível para o comum das pessoas.

Porque vivemos numa época de forte ecletismo e alucinante velocidade informativa, a confusão não tem parado de aumentar. Só o mercado que é totalmente subjectivo vai mantendo alguma ilusória estabilidade, fazendo equivaler valores económicos com valores culturais, numa amálgama que objectivamente não é nada esclarecedora.

Apesar de partilhar muita da visão crítica sobre a decadência e charlatanismo da arte contemporânea, acredito que continuamos a precisar de uma coisa a que nos habituámos a chamar arte. Não tanto como um produto mundano ou espectacular de uma sociedade de desperdícios, mas na sua função original. Ou seja, como um mecanismo comunicacional singular capaz de tornar visível aquilo que a realidade esconde ou que por outros meios, nomeadamente a linguagem racional, não é possível revelar. A complexidade da nossa sociedade, os enormes avanços científicos e tecnológicos, a permanente agitação económica e social criaram um sentimento generalizado de desorientação. O mundo é cada vez mais evoluído, mas cada vez menos compreensível. É por isso que a arte continua a ser útil. Para dar a ver o que está turvo.

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