Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
Fernando Sobral - Jornalista fsobral@negocios.pt 12 de Dezembro de 2003 às 15:02

Os desconfiados do costume

Neste país a desconfiança é a língua franca. A confiança é uma língua de trapos. No confiar está o galho. No desconfiar é que está o ganho.

  • ...

Portugal é um país de desconfiados. Desconfiamos sempre dos suspeitos do costume. Os outros. Aqueles que dançam tango, ainda comem tremoços e não vão aos fins-de-semana ocupar o seu saudável tempo livre nos centros comerciais.

É normal, como mostrou um inquérito recentemente divulgado, em que os portugueses, que têm basicamente metade dos seus cidadãos em países distantes, desconfiam dos 2% de emigrantes que lhes entraram pelas portas. Os portugueses conseguem, ao mesmo tempo, desconfiar dos políticos, da polícia, dos árbitros, dos dirigentes desportivos e dos jogadores.

Só o Estado não desconfia: acredita que os jogadores que vivem em Portugal pagarão impostos no país e que os que vivem no estrangeiro, pagarão impostos noutro local qualquer.

Portugal é a “off-shore” dos desconfiados. Aqui investe-se em “futuros” de desconfiança e pouco se arrisca no presente. Em cada português há um adepto dos enredos da sra. D. Branca e um desconfiado de quem lhe cobra um imposto.

Em Portugal há uma série de sucesso: “Os Desconfiados”, sucessora de “Os Incorruptíveis” e de “Os Marretas”. Neste país a desconfiança é a língua franca. A confiança é uma língua de trapos. No confiar está o galho. No desconfiar é que está o ganho.

Afinal, desconfiando de tudo e de todos, como é que os portugueses podem confiar em si próprios quando olham para o espelho? Como no romance do sr. Oscar Wilde, quando olham para o espelho a desconfiança nunca envelhece. Vejamos. O sr. Afonso Henriques desconfiou da mãe e criou-se um país. Houve quem desconfiasse do pão da sra. Inês e as dúvidas transformaram-se em rosas. Os portugueses desconfiaram do pinhal de Leiria do sr. D. Dinis e houve madeira para fazer barcos para as Descobertas. Os velhos do Restelo desconfiavam de tudo e tiveram direito a um monumento.

A desconfiança é o hambúrguer dos portugueses: alimentam-se dela como de pastéis de nata para a boca. É claro que nem sempre houve desconfiança sobre os estrangeiros, especialmente no futebol.

Em décadas idas os nascidos à sombra deste rectângulo abençoado, que na altura ainda eram portugueses, deram momentos de glória aos portugueses. Enfim, o sr. Eusébio nasceu em Moçambique. Depois criou-se a maior ficção dos estrangeiros que não o eram: os jogadores de fora de portas casavam com portuguesas que, muitas vezes, nunca viam, e tornavam-se portugueses.

Este conceito esteve na moda até ao dia em que os brasileiros garantiram rapidamente a dupla-nacionalidade (mas só no futebol) e a União Europeia criou os princípios dos comunitários e extra-comunitários. O paraíso era total: como poderíamos desconfiar de quem não fosse jogador português, especialmente se todos os meses desapareciam passaportes e senhas dos consulados portugueses nas mais diversas partes do mundo? Desconfiados, os portugueses chegaram a preferir treinadores estrangeiros, mas como o que é nacional é bom, ainda há quem duvide que os que vieram de outras paragens trouxeram ar fresco ao universo condicionado do futebol indígena.

Aí os portugueses desconfiaram. Por isso os clubes, falidos, contratam craques estrangeiros a peso de ouro e deixam na II Liga, e nas divisões ainda mais secundárias, jogadores de elevado potencial. Como eram portugueses, eram para desconfiar. No futebol sempre se usou o princípio local: se é português é mau, se é estrangeiro é bom.

Não se percebe como é que, num inquérito nacional, se desconfiam dos estrangeiros. A menos que os estrangeiros só sejam bons para trabalhar nas obras, para jogarem nos clubes e para servirem às mesas e distribuírem pizzas ao domicílio. Os portugueses desconfiam dos estrangeiros desde que eles não sejam um bom negócio.

Seja no futebol, seja em muitas outras actividades. Custa olhar para este país que deu mundos ao mundo e emigrantes aos Estados Unidos, à Europa, ao Cana-dá, à África do Sul, ao Luxemburgo e à Austrália. País que tentou, sem desconfianças, encontrar um espaço de confiança nas sete partidas do planeta, olha hoje para o umbigo e, um dia destes, ainda vai exigir que tudo seja português. Menos os produtos que consome, que já não são feitos dentro das nossas fronteiras. Portugal é o país da desconfiança. Será que um dia voltaremos a ter confiança em nós próprios?

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio