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16 de Julho de 2008 às 14:00

O TPI na hora da verdade

Passará a estação das chuvas no Darfur, chegará Setembro e os juízes do Tribunal Penal Internacional terão de decidir sobre o mandado de captura contra o presidente do Sudão. O mandado solicitado pelo procurador Luis Moreno-Ocampo alega a responsabilidade de Omar Al Bashir por crimes de guerra contra a humanidade e de genocídio.

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O procurador argentino afirma, nomeadamente, que o líder sudanês visou, ao longo dos últimos cinco anos, "destruir substancialmente" os grupos étnicos Fur, Masalit e Zaghawa ao organizar operações de contra-insurreição de cunho genocida.

A acusação, inédita contra um chefe de estado em exercício, deriva de uma investigação requerida em 2005 pelo Conselho de Segurança da ONU e segue-se à emissão pelo TPI de dois mandados de captura no ano passado contra um ministro do governo de Cartum e um líder de milícias Janjawiid do Darfur.

A iniciativa do procurador gerou de imediato críticas da União Africana (UA), da Organização da Conferência Islâmica de estados árabes e a apreensão generalizada sobre a previsível degradação das condições de segurança no Darfur.

Impasses e violência no Sudão

A retirada do pessoal não essencial da ONU do Darfur augura o pior para a missão de paz que, em coordenação com a UA, deveria colocar 26 mil militares na região.

Apenas 9.600 militares, apoiados por 1.300 civis, tentam controlar uma área cinco vezes maior do que Portugal e, consequentemente, oferecem escassa protecção a cerca de 14 mil elementos de organizações humanitárias que operam junto de mais de 2 milhões de refugiados.

Os 10 mil capacetes azuis estacionados no sul do país para supervisionar o acordo de paz firmado em 2005 entre o governo central e o Movimento de Libertação do Povo do Sudão, após 21 anos de guerra, correm, por sua vez, o risco de se verem envolvidos em novos confrontos se fracassar a mediação internacional sobre o estatuto da cidade petrolífera de Abyei.

Uma reacção violenta dos militares de Cartum, confrontados com uma perseguição judicial ao presidente, pode levar ao colapso do acordo entre o nortista Al Bashir e o sulista Salva Kiir, que assumiu a vice-presidência há três anos, e a realização de eleições em 2009.

As tensões entre mais de uma dezena de grupos rebeldes activos no Darfur, tropas do governo central, milícias Janjwiid e os confrontos entre tribos por terrenos agrícolas e de pastorícia, que em 2003 redundaram em violência generalizada, tenderão a agravar-se.

O conflito entre o Chade e o Sudão por milícias entrepostas arrisca ainda envolver os contingentes da União Europeia estacionados no leste do Chade e nordeste da República Centro-Africana para protecção de refugiados.

Para o mediador da ONU e da UA, Djibril Bassolet, do Burkina Fasso, o retorno da violência em larga escala que caracterizou os anos 2004 e 2005 no Darfur é uma das consequências previsíveis da impossibilidade de prosseguir negociações a partir do momento em que seja indiciado o chefe de estado do Sudão.

A justiça enviesada

A lógica judicial que guia o procurador do TPI bloqueia as negociações e cria uma situação ambígua para os representantes da ONU.

Se até agora a ONU tinha de negociar com um ministro procurado pelo TPI – Ahmad Harun, antigo responsável do Interior entretanto destacado para a pasta dos Assuntos Humanitários – a emissão de um mandado contra o próprio presidente impossibilita conversações com a administração sudanesa, que responde em última análise ante Al Bashir.

As críticas contra o procurador por parte de estados africanos e árabes, democráticos ou ditatoriais, expressam os temores pela erosão das soberanias nacionais, mas, também, a suspeita de enviesamento do TPI, que se concentrou até agora em actos criminosos de violência cometidos por africanos.

O TPI iniciou desde 2002 investigações no Uganda, República Centro-Africana, República Democrática do Congo e Sudão, mas logo no primeiro julgamento, no mês passado, o procurador viu os juízes de Haia ordenarem a libertação do congolês Thomas Dyilo por irregularidades processuais e ocultação de provas eventualmente favoráveis ao réu.

O Estatuto do TPI admite a possibilidade do Conselho de Segurança suspender por um ano investigações ou procedimentos criminais por razões de manutenção e restabelecimento da paz e segurança internacionais. Esta suspensão, que poderá ser renovada por períodos de doze meses, é agora exigida por Cartum para salvaguardar o presidente Al Bashir.

Primazia da política ou da justiça

A "grave preocupação" expressa por Pequim, a ambiguidade de Washington, que também não aderiu ao TPI, as reticências de Moscovo, que não ratificou o Estatuto de Roma, indiciam que a disputa sobre as acusações a Al Bashir venha a provocar nova cisão e recurso a vetos no Conselho de Segurança.

O TPI tem apenas jurisdição sobre cidadãos dos 106 estados signatários do Estatuto de Roma suspeitos de crimes de guerra contra a humanidade e genocídio, caso os tribunais nacionais sejam incapazes de desencadear processos judiciais.

O tribunal de Haia pode, ainda, actuar no caso de crimes cometidos em território de estados aderentes ou por resolução do Conselho de Segurança, como se verifica na situação do Sudão.

O âmbito de actuação de TPI é relativamente limitado, mas, conjugado com o recurso ao princípio de jurisdição universal já invocado por juízes da Espanha ou da Bélgica para processar nos seus tribunais nacionais suspeitos de outros países por crimes contra a humanidade, genocídio e tortura, representa uma ruptura com as práticas tradicionais de garantia de imunidade a chefes de estado e governo por actos cometidos no exercício do poder.

As realidades contraditórias da política entram em colisão com as exigências universais da justiça e as consequências de um eventual processo do TPI contra o presidente do Sudão irão marcar o destino da justiça penal internacional.

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