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Opinião
06 de Junho de 2006 às 13:59

O todo virtual

A história é tão verídica quanto reveladora; a mulher mais parecia uma Imelda Marcos na voracidade de provar e comprar sucessivos pares de sapatos, esse primor da indústria nacional, enquanto o marido, pachorrento, a ia seguindo naquele ritual tão penoso

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A certa altura, o dono de uma das lojas, o senhor Manuel (suponhamos), vira-se para o homem-sombra e pergunta-lhe educado; «Olhe lá! O senhor não trabalha na televisão? Na África do Sul? E não tem medo?».

O pachorrento olha-o, sorri e anui com a cabeça; «Sim, Trabalho» – responde-lhe, habituado que está a ser massacrado por esta visão da África do Sul. «Sim... mas posso-lhe fazer uma provocação?».

O outro arredondou-se numa curiosidade escutadora.

«Sabe, ali a minha mulher, perguntou-me antes de virmos de férias a Portugal se devíamos ou não trazer connosco os nossos filhos, porque a imagem que nos chega deste país, fá-lo pela mesma via com que vos chega a da África do Sul».

«Hoje em dia, se uma pessoa formar a ideia de um país a partir da informação electrónica média, tem uma ideia completamente distorcida ou, no mínimo, tunelar, da realidade».

O «anfitrião» arqueou as sobrancelhas e, por arrasto, a restante decoração facial.

«Imagine lá a ideia que nós, no outro lado do Mundo, formamos deste país, onde a certa altura cada jornal televisivo passava três ou quatro peças de pedofilia, pedófilos, presumíveis pedófilos, condenados a provarem a respectiva inocência?»,

«Para quem vive aqui» – prossegue – «é possível relativizarem a coisa. Bem sabem que o país é muito mais do que uma Pedofilolândia. Mas e para nós, à distância, sem uma vivência ou informações complementares, que nos permitissem contextualizar as notícias?».

«É verdade que o crime é um problema social na África do Sul, mas está longe assumir o carácter opressivo ou selectivo que aqui se presume. Na realidade, a qualidade de vida é muito superior à de Portugal e essa está longe de ser a imagem que passa. Ou não é assim?».

Manuel limitava-se a ir dizendo que sim, com a cabeça, com a mesma fidelidade com que diria a cada um dos seus clientes, que aquele sapato, acabado de assomar da caixa, lhe assentaria «como uma luva».

«Pois é... pensando bem o senhor tem razão... bem vistas as coisas, se nós fossemos formar uma ideia do Mundo a partir do que se vê nas televisões...» – espraiou-se ele antes de dar conta que o seu interlocutor fazia parte da tal «máquina deformadora».

Manuel regressou ao seu próprio túnel existencial. Reinventou-se na pele aveludada de vendedor, distribuindo charme e elogios à sua volta, qual borboleta vaporosa, polvilhada de pólens diversos.

O «jorna» passeava os olhos na banca próxima, montada no passeio calcetado. Entre caganitas de cães e escarretas dos passantes. Esse adereço tão urbano-português, aqui tornado «natural» mas que arrepia a pele (e os sentidos) – para não falar nos tais sapatitos – dos «bifes» e outros «ifes», vindos da tal estranja onde damos graças por não viver.

Nos títulos, o país é transferido para novo túnel, desta vez do futebol. E tudo o mais é engolido pela vertigem de afogar leitores, ouvintes e telespectadores, num banho de informações e de inanidades, que ninguém conseguiria digerir, mesmo sendo o maior fanático do Planeta.

Num dos artigos entrevista-se um trolha de obras fronteiras à vivenda de Mourinho, em Setúbal, e a cozinheira de um restaurante próximo a fazerem «revelações incontornáveis», sobre as movimentações rodoviárias do «dito cujo» e um leitão «servido de repasto na mesa da família Mourinho».

O «pachorrento marido», da nossa Imelda Marcos, opta por regressar ao túnel existencial de.... «marido da nossa Imelda Marcos». Pelo menos nesse delírio virtual há qualquer coisa de lúdico, puro, onde não se confunde o público e o privado. E o todo com a parte.

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