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O pesadelo português

Bebemos futebol, comemos futebol, dormimos futebol, futebol, futebol, futebol.

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Viver em Portugal começa a ter semelhanças com um pesadelo infindável. O português acorda e pensa: que vai hoje acontecer-me? E vai, certamente, acontecer-lhe o pior. Estamos cada vez mais afastados da média europeia. Acentuam-se as diferenças entre o hoje que se desvive e as expectativas de há dez anos. Os mais novos não vêem para lá do horizonte imediato. O futuro é-lhes negado, e as ofertas de trabalho são vagas, imprecisas ou inexistentes.

Aumentam os combustíveis e multiplica tudo o que concerne à cadeia alimentar. As rendas de casa estão pela hora da morte; as pensões são miseráveis e preparam-se para aplicar o IRS a quem recebe mais de 500 euros mensais; o desemprego aumenta e a inflação cresce; saem do país milhares daqueles que ao país fazem falta. Aos domingos, as televisões rivalizam com a exibição de desafios de futebol. Nos intervalos e nos finais, comentários de «comentaristas», de treinadores e de futebolistas. Também se ouve este e aquele, ao acaso apanhado na rua. Sobre futebol, é bom de ver?

Às segundas-feiras, análises, nos seis canais, dos resultados dos jogos. Graves intelectuais substituem-se a Gabriel Alves ou a Vítor Serpa, já de si austeros, na profusa interpretação dos austeros acontecimentos. Rui Santos, cheio de gel e de Armani’s, discreteia acerca dos insondáveis enigmas do redondo da bola. Terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo de manhã enchem-nos de previsões, interpretações, teses, antíteses e sínteses sobre futebol, de futebol, com futebol, tudo pelo futebol, nada contra o futebol. Há três diários de futebol, não de desportos: de futebol. Os «generalistas» apresentam seis, sete, dez páginas de futebol, não de desportos: de futebol. Mareiam, nestes nossos tenebrosos tempos, as taras do mais ignaro analfabetismo, alimentado por criaturas que possuem do conhecimento um conceito de eguariços. Bebemos futebol, comemos futebol, dormimos futebol, futebol, futebol, futebol.

Desde que Mário Soares enfiou o socialismo na gaveta (antes mesmo de haver em Portugal o mais leve resquício de socialismo), não deixámos de descer o plano cada vez mais acentuado de um declínio mascarado de discursos banais. As gerências entremeadas do PS e do PSD, com presenças mais ou menos espaçadas do CDS, não conseguiram organizar a sociedade de molde a que as questões sociais estabilizassem no equilíbrio comum aos consensos. E a tão proclamada pobreza de recursos nacionais não serve de desculpa absoluta, assim como já cansa a atribuição constante de responsabilidades ao legado do fascismo. Venha daí o futebol!

Possuo as listas de reformas atribuídas a altos funcionários de instituições públicas e pró-estatais. Entre os 3 600 contos, os 2 300, os 1 400 e os 1 200 (moeda antiga) os valores mensais não variam muito. E são centenas e centenas os «aposentados» que beneficiam desta obscenidade moral. Entretanto, 120 deputados deram a si próprios umas férias, continuando uma tradição de absentismo impante e impune. Como colegiais faltosos, têm de apresentar justificação da ausência. Quando o Governo nos exige sacrifícios, alguns desses senhoritos surgem, nas televisões, a corroborá-los, aplaudindo. E nem um dos «jornalistas» que os interrogam alude, sequer levemente, à ignomínia dos recebimentos. Salte daí o futebol!

A mão pesada deste Governo não tem distribuído as decisões com a equanimidade exigível porque prometida. José Sócrates não é um equívoco: é uma correcção; e não é importante ser a emenda para que se evite criticá-lo e chamá-lo à pedra. Embora tenhamos de reconhecer que ele nunca se reclamou do «socialismo», apenas falou numa «esquerda moderna», obscura habitação onde residem todas as indecisões, frustrações ideológicas e aventureirismos. Ah!, futebol, vem daí, futebol!

Está claro que Sócrates é uma metáfora que procede do seu passado adolescente. Não se é político por iniciativa pessoal: é-se político por impulso criador, porque a política insiste em que a realizem. Ora, a não ser Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro não houve, no Portugal de Abril, nenhum político que estivesse à altura do impulso criador proporcionado pela História. Cada um deles tinha um projecto (criticável, discutível, mas projecto) para o País: houve quem traísse, houve quem o não conseguisse. Nenhum Governo posterior à «normalização» de Abril apresentou uma, uma só, ideia política inovadora. A História é uma deusa cega.

Vale a pena viver em Portugal? Ao contrário do que expendeu um preopinante na TVI, não é somente o dinheiro que molda bons políticos. É um problema de ética republicana. E a abstrusa comparação entre o que se aufere no sector privado e o que se ganha no sector público, para justificar a mediocridade, a corrupção e a indigência dos políticos, obedece a uma mitologia particular, sem qualquer sustentação racional.
 
APOSTILA  1 -  Simplesmente sórdido o que a TVI fez com a morte do moço actor Francisco Adam. A especulação imoral sobrepujou o recolhimento que a tragédia devia proporcionar e exigir. A baixeza do marquetingue ultrapassou, desavergonhadamente, os limites do decoro. Uma das meninas-pivô afirmou, sem pejo, que se tratava de «um assunto incontornável». Assim vai o jornalismo em Portugal, que não tem nada a ver com o jornalismo português. Um nojo! 

APOSTILA  2 - Os nossos miúdos de Elvas e arredores vão nascer em Badajoz! A sentença, «socialista», destina-se à poupança de uns pingues milhares de euros. Isto chega a ser afrontoso.
b.bastos@netcabo.pt

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