Opinião
O novo contencioso administrativo
O regime da cumulação de pedidos consagrado no novo contencioso administrativo constitui alteração de grande relevância face ao anterior regime da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Finalmente entrou em vigor, no passado dia 1 de Janeiro, o novo Contencioso Administrativo. O processo de elaboração do novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) foi longo e atribulado, objecto de um amplo debate público que contou com a realização de numerosas palestras, organizadas pelo Ministério da Justiça e pelas Faculdades de Direito.
Esta reforma teve como pano de fundo o reforço das garantia dos particulares, na busca de uma verdadeira tutela efectiva, procurando pôr fim a muitas das distorções do sistema, que se traduziam em verdadeiras situações de denegação de justiça para o particular que recorria aos tribunais administrativos.
Com a entrada em vigor desta reforma, adoptam-se duas formas principais de processo: a acção administrativa comum, que segue os termos do processo civil, com algumas adaptações constantes do CPTA, e a acção administrativa especial, que segue a tramitação própria do CPTA, pondo, assim, termo à tradicional dicotomia entre as acções e o recurso contencioso de anulação.
A diferença entre as duas formas depende de estar, ou não, em causa a prática ou a omissão de manifestações de autoridade, isto é, de actos ou regulamentos administrativos, o que significa que continua a pensar-se num regime especial para os meios impugnatórios.
A acção administrativa especial permite, porém, inovatoriamente, formular pedidos cumulativos relativos à impugnação de actos administrativos, à condenação na prática de actos administrativos legalmente devidos, e a pedidos de declaração de ilegalidade ou omissão de regulamentos devidos.
A enumeração dos tipos de pedidos que seguem os termos da acção administrativa comum é, ao contrário da acção administrativa especial, exemplificativa, dada a indispensabilidade em assegurar uma tutela jurisdicional efectiva quanto a todos os pedidos, mesmo quando não exista meio processual especificamente previsto para o efeito.
Seguem a tramitação da acção administrativa comum, designadamente, os pedidos relativos a reconhecimento de direitos, pedidos de indemnização fundados em responsabilidade civil, condenação à adopção de comportamentos, interpretação, validade e execução de contratos.
O regime da cumulação de pedidos consagrado no novo contencioso administrativo constitui uma alteração de grande relevância face ao anterior regime da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
A sua admissibilidade enquadra-se no princípio da efectividade da tutela jurisdicional, dado que permite que o particular obtenha, numa única acção, a protecção adequada para os seus direitos ou interesses violados ou ameaçados, mesmo quando se trate de uma cumulação de pretensões a que à partida, deveriam corresponder diferentes formas de processo, estabelecendo o Código que, quando tal cumulação tiver lugar, se seguirá a forma da acção administrativa especial.
Adopta-se um princípio de livre cumulação de pedidos, sempre que a causa de pedir seja a mesma, ou os pedidos se encontrem numa relação de dependência ou prejudicialidade.
A título de exemplo, passa a ser possível a cumulação do pedido de anulação de um acto administrativo com a indemnização correspondente, bem como o pedido de anulação de um acto administrativo com a anulação ou declaração de nulidade do contrato que dele dependa.
Quantas vezes no decurso de um concurso público para promoção de funcionários públicos, um funcionário é desqualificado por um cálculo errado dos anos de serviço e mais tarde vê um outro funcionário promovido no seu lugar embora com menos currículo, requisito também tido em conta.
Perante esta situação o funcionário via-se confrontado com a necessidade de intentar duas acções separadamente, uma com vista à impugnação do acto administrativo de exclusão do concurso público e outra de apreciação da validade do contrato celebrado com base nesse acto ilegal.
Daí que não seja de espantar que os nossos Tribunais Administrativos estejam entupidos de processos que podiam ser evitados, bastava que fosse admitida a possibilidade de cumulação dos dois pedidos numa mesma e única acção com evidente ganho de tempo e tutela dos direitos e interesses do particular lesado.
É este mecanismo célere e eficaz que vem previsto no novo Código. O novo Código vem admitir que esta cumulação não se verifique apenas ab initio, aquando da propositura da acção, mas vem prever, igualmente a possibilidade de a cumulação ter lugar a título superveniente, já na pendência de um processo de impugnação, ou seja, uma ampliação do objecto do processo, proporcionando uma maior flexibilidade do mesmo.
Por exemplo, no âmbito da actividade contratual da Administração Pública, a “velocidade” do recurso contencioso de anulação dos actos de procedimento pré-contratual tem conduzido à situação de, a haver sentença de anulação, já o contrato tenha sido celebrado, como até, provavelmente, executado.
Nestes casos, a jurisprudência tem sido unânime em decidir ou, no sentido da inutilidade superveniente da lide ou, o de considerar mesmo que existe causa legítima de inexecução de uma eventual sentença de anulação se, o contrato tiver sido executado, lógica completamente inaceitável.
É igualmente de assinalar a introdução, no âmbito da acção administrativa especial, da possibilidade de os tribunais administrativos condenarem a Administração à prática de actos administrativos ilegalmente omitidos através da acção de condenação na prática do acto devido e a sua profunda repercussão sobre a tradicional figura do indeferimento tácito, acolhido no Código de Procedimento Administrativo.
Em boa verdade, o CPTA procede à abolição da figura do indeferimento tácito que só fazia sentido pela necessidade de ficcionar um objecto de impugnação, na senda do modelo contencioso estritamente anulatório, tal como vigorava entre nós.
De facto, a partir do momento em que o CPTA introduz a possibilidade de se proporem acções dirigidas à condenação da Administração à prática de actos administrativos ilegalmente recusados ou omitidos, não se justifica continuar a prever a impugnação anulatória de indeferimentos tácitos.
A partir de agora, se a Administração permanecer em silêncio, não há por que falar de uma faculdade do interessado de presumir que a Administração indeferiu, para poder reagir contra esse pretenso indeferimento.
Hoje, com a nova lei, já não devemos encarar a omissão como exprimindo uma manifestação de vontade da Administração, mas antes como uma situação de efectivo incumprimento, tendo o interessado a possibilidade de recorrer para o tribunal administrativo competente para fazer valer o seu direito a uma decisão que foi ilegalmente preterido.
Verificam-se também importantes alterações em matéria de providências cautelares. Trata-se, aliás, de uma das matérias em que mais relevantes novidades se constatam.
Destas novidades destaca-se a possibilidade de adopção de medidas cautelares positivas e não especificadas, podendo o tribunal escolher a que considere mais adequada, sem estar condicionado a medidas pré-definidas.
Deste modo, os tribunais administrativos passam a poder adoptar toda e qualquer providência cautelar, antecipatória ou conservatória, isto é, não está apenas em causa que se mostre adequada a assegurar a utilidade das sentenças a proferir nos processos principais.
Enumera-se um conjunto exemplificativo de medidas que em muito ultrapassa as actualmente previstas na Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Por exemplo, a admissão provisória emconcursos e exames, medida obviamente cautelar porque até agora se, eventualmente, o candidato fosse readmitido, após anulação do acto de exclusão, tal decisão traduzirse-ia numa reparação meramente indemnizatória porque o concurso já tinha ocorrido.
Outra medida extremamente eficiente, prende-se com a autorização provisória do interessado para iniciar ou prosseguir uma actividade.
Deste modo, comunica-se à autoridade administrativa, previamente, o início ou continuação da actividade, o que permite, vantajosamente, por um lado, um controlo a posteriori, não conferindo nenhum direito adquirido, mas não impede, por outro, o funcionamento normal da actividade, permitindo o exercício da iniciativa privada.
Um novo caminho foi traçado, agora resta começar a trilha-lo!
N.R.: Sónia Afonso Vasques, colunista convidada da Simmons & Simmons Rebelo de Sousa, Rebelo de Sousa & Associados