Opinião
O lixo de Nápoles
Há quase vinte anos que o problema do lixo na região de Nápoles apoquenta a política italiana. Em 1994 foi nomeado o primeiro “czar” do lixo com plenos poderes para a resolução do problema. Há pouco Romano Prodi nomeou a nona individualidade com essa miss
Periodicamente as crises surgem, com gravidade crescente, porque todos os aterros estão cheios e já não há mais locais onde acumular lixo nesta região classificada – aliás, com toda a justiça, se esquecermos este detalhe – como património da humanidade. No fim de semana, as televisões mostravam o bispo de Nápoles a rezar uma missa pedindo a intervenção divina, ao mesmo tempo que o governo Prodi caía, ilustrando mais uma vez a esclerose política do país.
O que levou à crise do lixo não foram os resíduos produzidos pelos habitantes da cidade, mas sim o facto de a Campania se ter tornado no local onde se acumula o lixo tóxico da Itália e da Europa, num negócio milionário, controlado pela mafia local, que emprega milhares de trabalhadores e que, por essa razão, tem sido, ao longo do tempo, subsidiado pelas autoridades locais. Isto apesar de, há cerca de 15 anos, a Itália ter assistido à operação “mãos limpas”, conduzida por um conjunto de juízes corajosos com vista a eliminar a corrupção que minava a política e os negócios do país.
Questões como estas, num país desenvolvido, membro da UE desde o seu início e – muito mais importante do que isso – com uma riqueza cultural ímpar, devem fazer reflectir em quais são as características do sistema político e da própria sociedade que, nuns casos, criam problemas como estes, noutros os resolvem. A fraqueza dos governos, não obstante sucessivas reformas do sistema eleitoral é certamente um obstáculo de monta, mas uma barreira não menor é que resulta das práticas que impedem que o eleitorado seja confrontado com opções políticas claras. A essas preferem-se as imagens de personalidades providenciais, criadas graças a posicionamentos nunca bem definidos e que se transformam segundo as conveniências do momento, aconselhadas pelas técnicas do marketing político. Em matéria de reformas, por seu lado, a técnica usada consiste no que os italianos chamam a stratificazione, ou seja, a introdução de novas regras ou instituições em cima das que já existiam, sem as substituir e criando, por isso, as maiores dúvidas na aplicação da lei. A credibilidade dos políticos é cada vez mais vítima desses artifícios e leva, por exemplo, a que os habitantes da Campania recusem obstinadamente a instalação de incineradoras porque não acreditam na capacidade dos governos – central ou local – para lidar com a questão-base da poluição e da acumulação dos lixos tóxicos.
No actual debate político em Portugal reconhecem-se laivos dos problemas italianos. A contrariá-los está um sistema eleitoral que, não sendo perfeito, permite, apesar de tudo, bastante mais estabilidade governativa. Alguns exemplos mostram, porém, as semelhanças. Um deles é a campanha contra a ASAE. Num recente debate no Parlamento, diversos críticos pareciam considerar que as leis que ela tem por missão fazer aplicar, apenas foram aprovadas para satisfazer obrigações europeias ou preconceitos “higienistas” ou ambientais, mas que, uma vez satisfeitas essas exigências, a aplicação das leis devia sabiamente ignorá-las – tal como sucedeu com a acumulação do lixo em Nápoles.
Ainda mais interessante é o caso da saúde. Em debates abertos, fica claro que as medidas tomadas no reordenamento dos serviços – das maternidades, das urgências, dos serviços de transporte de doentes, etc. – se justificam, melhoram significativamente os cuidados prestados e o acesso da população a esses cuidados. Os críticos não propõem alternativas a esse nível, apenas lamentam que as políticas não tenham sido “explicadas” às populações. Esse argumento serve depois para alimentar o clima de obscurantismo e mesmo a tentativa de suscitar o alarme das populações, impedindo efectivamente que as explicações sejam compreendidas por elas. Como sucedeu já com as maternidades, a prática acabará por mostrar o bom fundamento das políticas, mas, em vez de isso ser conseguido promovendo a confiança das pessoas e, simultaneamente, aprofundando o debate onde ele precisa de ser aprofundado, o que se procura é evitar a tomada de posições, desejando agradar a todos, mas acabando apenas por conduzir ao descrédito dos políticos.
Agradar a todos implica, por exemplo, defender o sistema de saúde “tendencialmente gratuito” que a Constituição consagra, nos termos vagos que lhe são próprios. Sobre isso, há uma única certeza: a de que o sistema de saúde não é gratuito: os seus agentes, os medicamentos, as infra-estruturas e os equipamentos que usam não são evidentemente gratuitos e Portugal não está – felizmente – em condições de recorrer à fundação Gates para os financiar. Aquele princípio devia, por isso, ter explicitado que o serviço devia ser financiado apenas pelos impostos, o que daria uma ideia muito mais precisa da situação e, desde logo, faria pensar na necessidade de zelar pela eficiência dos serviços, pela boa gestão do pessoal, das infra-estruturas, etc.
É apenas nessa área que há opções em jogo e opções que não são fáceis. Por um lado, as necessidades e as tecnologias evoluíram muitíssimo, exigindo novas soluções flexíveis e eficientes, frequentemente em contradição com as regras instituídas. Por outro, porque durante demasiado tempo se ignoraram esses condicionalismos, optando-se antes por soluções fáceis de gestão de pessoal e de promessa de serviços ao sabor das conveniência políticas.
Finalmente, porque se criaram ideias feitas sobre serviços públicos e privados que precisam de ser debatidas com clareza para garantir que, de facto, todas as pessoas, sejam quais forem os seus meios, têm acesso a cuidados de saúde, o que supõe a maior eficiência na sua prestação, quer ela provenha de entidades públicas ou privadas, sem esquecer que serão sempre os impostos a pagá-los.