Opinião
O Facto Consumado
A área onde o Governo parece disponível para ir mais longe é na área das pensões de reforma. Saúda-se muito esta sua preocupação. É nesta área que existem os maiores perigos de sustentabilidade das finanças públicas.
O aspecto mais perturbador do relatório da Comissão para a Análise da Situação Orçamental (Comissão) sobre o défice público previsional em 2005 é a facilidade com que as instituições públicas aceitam a inevitabilidade do aumento de despesa. Sabe-se que as despesas aprovadas no OE 2005 são, no mínimo, restritivas, isto é, os serviços iriam ter de se esforçar muito para cumprir o orçamento. Ainda não se chegou a meio do ano e a Comissão, ao fazer um estudo desta natureza e ao apresentar as suas conclusões desta forma acrítica, acaba por legitimar os serviços públicos a gastar mais do que aquilo que deviam gastar e a comportar-se como o fizeram no passado.
Num país normal as instituições mais nobres da democracia, como a Assembleia da República, não são sistematicamente ignoradas. Neste episódio temos a situação insólita de um Parlamento, perfeitamente legítimo, ter aprovado um orçamento, até apoiado pelo Presidente da República, que autorizava o Estado a gastar um determinado montante em 2005 (47,6% do PIB). Porém, bastou a existência do relatório da Comissão constituída por reputados especialistas para que se torne aceitável para todos que, em 2005, se possa gastar muito mais do que aquilo que foi previamente autorizado (49,3% do PIB).
É difícil gerir com rigor nestas circunstâncias e aqueles que, no Estado, usam todos os truques para armadilhar os decisores políticos vêem o seu esforço recompensado. Valeu a pena assumir compromissos sem autorização. Valeu a pena a política do facto consumado.
O relatório da Comissão tem, porém, algumas consequências positivas. Parece que deixou o XVII Governo preocupado a ponto de decidir mesmo tomar medidas. Isto é muito positivo num Governo com legitimidade total mas que tem mostrado alguma timidez no exercício do poder.
Infelizmente, contudo, também o Governo parece querer utilizar as conclusões do relatório da Comissão como uma «autorização» para fixar o nível de despesa pública num novo patamar mais elevado.
O Governo poderia optar por outra via. Por exemplo podia dizer que os objectivos inscritos no OE 2005 eram muito exigentes, mas que os iria tentar cumprir, eventualmente modificando a sua orientação. Caso falhasse esse objectivo teria de descortinar receitas extraordinárias, que têm a vantagem de não criarem tanta habituação no Estado como os impostos.
Mas será fácil o teste ao Governo. É o valor que vier a inscrever na despesa pública total, no Orçamento rectificativo, que permitirá avaliar quão dependente e amigo da despesa pública é o actual Governo. Se o Governo aprovar um valor superior a 48,3% do PIB (o nível da despesa de 2004) ficamos a saber que os impostos adicionais que o Governo optou por cobrar vão servir não para combater o défice mas sim para financiar nova despesa pública e novos projectos.
A área onde o Governo parece disponível para ir mais longe é na área das pensões de reforma. Saúda-se muito esta sua preocupação. É nesta área que existem os maiores perigos de sustentabilidade das finanças públicas. A harmonização do sistema de reforma entre a Caixa Geral de Aposentações e a Segurança Social é em si mesmo uma medida positiva. Mas os princípios de justiça e equidade estão feridos de morte. Qual a justiça de fazer isso apenas para as pessoas que só agora entram para a função pública? Se houve privilégios iníquos atribuídos ao longo dos últimos 30 anos não será demasiado lento premiar os factos consumados e dar benefícios excessivos a quem já está na função pública mas ainda não se reformou? É certo que o Primeiro-Ministro anunciou que iria aproximar o método de cálculo das pensões dos funcionários que entraram antes de 1993 com o dos que entraram a partir desta data, o que é positivo, mas há uma inconsistência clara com o regime que agora é proposto para os novos funcionários públicos.
Um jovem de 18 anos que venha a trabalhar na função pública vai ser penalizado duas vezes. Primeiro irá descontar mais, para a segurança social, e terá menos benefícios na sua reforma (esta medida é justa porque harmoniza as reformas entre o sistema público e o privado). Mas em segundo lugar, tal como os jovens que trabalham no sector privado, irá também pagar mais IVA, ISP e IRS para financiar benefícios de reforma de outros e a que ele nunca poderá aspirar. Esta injustiça resulta em parte da forma enviesada como é abusado o conceito de direito adquirido na sociedade portuguesa.
Os direitos adquiridos de uns são os impostos de outros.
Compensa a política do facto consumado. O direito à reforma de alguns é um facto consumado. Os jovens que paguem a crise é o novo moto dos nossos governantes.
Perante tão grande pacote acumulado de injustiças só uma mudança na Constituição ou na interpretação que dela fazem os nossos mais eminentes juristas poderá retirar a rigidez à despesa pública, de que fala o relatório da Comissão, e permitir que as instituições da democracia (Parlamento e Governo) reganhem o controlo sobre o dinheiro de todos.
A verdadeira lição a retirar do relatório da Comissão é que a componente económica da Constituição da República se tornou hoje num grave problema da nossa democracia. É a Constituição que protege a rigidez da despesa. É a Constituição que protege os que estão «in» dos que estão «out». E é a Constituição que torna rentável para alguns a política da despesa consumada.