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O ano dos sonhos tornados possíveis

A década de 60 pôs em causa a ordem das coisas. Os dois sistemas de mundo equilibravam-se no terror, e o compromisso dos intelectuais estabelecia-se na admissão de uma das partes e na negação da outra. Não há terceira via, nem outra escolha. A neutralidad

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Direitos dos negros, assunção das responsabilidades morais e cívicas dos professores, dos escritores, dos cineastas, por aí fora. Uma mistura de Marcuse com Camus, de Marx com Rimbaud. Sartre escreverá que algo de surpreendente está a registar-se no outro lado do Atlântico.

A eclosão dos movimentos nacionalistas africanos é a lógica decorrência do «explorado contra o explorador» [Franz Fanon], e o «renascimento da dignidade sufocada pelo peso do imperialismo» [Henri Aleg]. Um pouco por todo o lado a contestação a um mundo velho, ao eurocentrismo, ao capitalismo norte-americano e à esfera soviética, atingem aspectos por vezes violentos. Todas as manifestações sociais e artísticas possuem um fundo –  se não político, pelo menos «politizado.»

A América Latina está em polvorosa. Cuba é a medalha inoxidável de uma esperança à altura do homem. Um pacto estratégico, designado pelo acrónimo Pacto ABC (Argentina, Brasil e Cuba) põe em sobressalto a Administração dos Estados Unidos, cuja política externa é semelhante, estejam no poder Republicanos ou Democratas. Países cujos governos foram democraticamente eleitos, mas que questionam a hegemonia do vizinho do Norte, são alvo de golpes de estado patrocinados pela CIA. A lista de «invasões subtis» [Darcy Ribeiro] é impressionante, como impressionantes são os assassínios, as torturas, as perseguições a quem se lhes opõe. Em nome da liberdade, os serviços secretos e as agências de espionagem dos EUA jugulam qualquer tipo de antagonismo à sua imperial vontade.

Os levantamentos populares em países da esfera soviética suscitam apreensões das mais graves. Os processos políticos movidos contra dissidentes atingem proporções inauditas. Começam a surgir livros testemunhais, depoimentos terríveis, polémicas assanhadas, revelações acerca dos goulags, denúncias feitas por nomes respeitadíssimos. O relatório Krustchev é o culminar de um período e o patamar para o nascimento de outro.

Em 1962, a academia portuguesa manifesta-se. Em 1969 a agitação adquire outras dimensões. O «esquerdismo» ambiciona destituir os partidos comunistas tradicionais, demasiado «enfeudados às estratégias de Moscovo.» Mas em Portugal, os ecos dessas convulsões são muito ténues. A censura aperta a vigilância e as cadeias estão repletas de presos políticos. Para fugir à guerra colonial. Milhares e milhares de portugueses fogem clandestinamente ou desertam. Fixam-se em França (a maior parte), em Inglaterra, na Suíça e na Suécia. A emigração legal é discretamente estimulada por Salazar, que beneficia dos envios de dinheiro.

O Maio de 68, em Paris, não obtém, em Portugal, a expressão que a sua grandeza justifica, devido às draconianas limitações de informação e de liberdade. A censura chega a cortar, literalmente, páginas inteiras de «Le Monde»; «Le Figaro», diário de Direita, é, amiúde, proibido de circular em Portugal; «L’Express» é tido como revista afecta aos comunistas!

É-nos ocultado o que, realmente, ocorre na guerra de África. A morte de soldados é atribuída, amiudadas vezes, a «acidentes de viação.» Os serviços cartográficos do Exército filmam episódios terríveis, situações dilacerantes, severamente ocultados aos portugueses. A Imprensa dá maior ênfase à guerra do Vietname (e, mesmo assim, com as restrições que o regime impõe) do que aos conflitos africanos. Nos cafés discute-se o que se escuta em rádios clandestinas, o que se lê nos jornais ilegais, as novidades trazidas por quem foi a Paris ou a Londres. Viajar não é fácil. Primeiro porque o dinheiro não abunda; depois, porque a obtenção de passaportes torna-se cada vez mais difícil. Conhecemos de nome e de obra os cantores da Resistência, exilados no estrangeiro. Pouco mais.

O Maio de 68 traz, no bojo, um projecto de «transmutação cultural» [Edgar Morin] e uma espécie de bandeira desfraldada no seguinte conceito: «Quando se critica radicalmente, constrói-se.» A guerra de Argel é, para os contestatários da Sorbonne, o despertar de uma particular consciência política. Evidentemente, as ondas provocadas pelos estudantes reflectiram-se, amenamente embora, pelos motivos atrás aduzidos, na contestação portuguesa de 1969. De súbito, havia a presciência de que algo de novo existia sob o imediatamente visível. Tem-se aqui conhecimento de que Cohen-Bendit não só enfrenta a polícia (há fotos famosas) como insulta Aragon, por «cumplicidade com os crimes de Estaline.» As razões da cólera poderão, eventualmente, possuir, neste caso, um reflexo importante. As reflexões e interpretações que possamos fazer revelam a riqueza do movimento, que provocou as maiores perplexidades nos intelectuais aparentemente mais qualificados para o esclarecer.

Quarenta anos volvidos que resta do Maio de 68? A noção de que tudo é possível e de que o impossível não existe quando a força da liberdade se ergue sem temor. A Imprensa, por exemplo, nunca mais foi a mesma: seria impensável voltar atrás. Mesmo os jornais mais conservadores tiveram de acertar o passo pelo novo figurino. Claro que há algo de inacabado e um certo gosto a cinzas no paladar dos que esperam sempre mais do que o mais. Mas valeu a pena. Uma geração teve a coragem de negar o que lhe era rudemente imposto. Uma geração fabulosa, numa época que a desafiou a criar uma aventura fabulosa. Aprendemos que, por debaixo do pavimento, havia praias. Foi a década de todos os sonhos e o ano de todas as esperanças.

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