Opinião
10 de Dezembro de 2020 às 12:00
O jogo: covid-19 versus AdC 20
Em 2007, na ressaca do primeiro debate de Barack Obama com Hillary Clinton, Joe Biden e outros candidatos democratas para a escolha do candidato presidencial, um Obama ingénuo refletia sobre o seu desempenho.
Em 2007, na ressaca do primeiro debate de Barack Obama com Hillary Clinton, Joe Biden e outros candidatos democratas para a escolha do candidato presidencial, um Obama ingénuo refletia sobre o seu desempenho. Obama tinha revelado dificuldade em responder a uma pergunta sobre a ameaça terrorista e em lidar com o cronómetro.
"‘Your problem’, Axe said, ‘is you keep trying to answer the question’.
‘Isn’t that the point?’ - I said.
‘No, Barack’, Axe said, ‘that is not the point. The point is to get your message across. What are your values? What are your priorities? That’s what people care about. Look, half the time the moderator is just using the question to try to trip you up. Your job is to avoid the trap they’ve set. Take whatever question they give you, give’em a quick line to make it seem like you answered it…and then talk about what you want to talk about’.
‘That’s bullshit’, I said.
‘Exactly’, he said."
Obama sentia-se frustrado: "Whether I liked it or not, people are moved by emotion, not facts" (in A Promised Land, 2021) [*tradução no final do texto].
Nos últimos dias pudemos ler em vários jornais que a Autoridade da Concorrência (AdC) continua a bater recordes e a aplicar coimas nunca vistas. Desde o alegado cartel da banca, passando agora pelas telecomunicações e antecipando-se já um desfecho próximo no setor da distribuição alimentar, os casos multiplicam-se e as coimas ganham contornos de admiração e aclamação públicas.
Tem a AdC razão? As empresas cometeram mesmo aquelas infrações? Os tribunais já se pronunciaram?
Na verdade, não interessa. Podia passar horas a discutir o mérito de cada caso, a interpretação da lei, a política de enforcement e de coimas, os direitos de defesa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça ou a Constituição. Mas não interessa. Isso são factos. As empresas já foram condenadas e de certeza que prevaricaram. Na imprensa e nas redes sociais encontraremos a prova: bem feito! A coima até devia ser maior! Deviam ser todos presos!
Mas a verdade é que não se pode criticar a AdC pela forma como está a jogar este jogo. Está a ganhar e com ampla margem. A AdC está a passar uma mensagem clara: a concorrência existe e deve ser levada a sério.
Este ano demonstrou que, com ou sem pandemia, a AdC continuará a fazer buscas, a procurar novos casos, empresas grandes e coimas ainda maiores.
Os casos são todos à prova de tribunal? Provavelmente não.
Nos últimos anos, as empresas envolvidas investiram de modo significativo na prevenção das práticas de que são acusadas? Provavelmente também não.
"Compliance" continua a ser uma palavra sem a capacidade de despertar as mesmas paixões que uma coima de milhões. Prevenir parece ainda um excesso de zelo, uma coisa de multinacionais. Para muitas empresas as coimas da AdC são como a covid: só acontece aos outros e só mata velhinhos. Mas as coimas de milhões são reais e alguém vai pagar.
Para jogar este jogo as empresas têm de conhecer bem as regras, antecipar-se e, claro, defender-se.
A AdC continua a apostar tudo na confortável almofada legal das infrações per se ou de perigo que os Tribunais da União Europeia e os especialistas vão criticando. É proibido porque sim e pode custar milhões também porque sim, mesmo que inexista qualquer impacto no mercado. E as empresas continuam a não perceber as regras do jogo. O preço é alto: paga-se primeiro e discute-se os factos depois.
Tinha de ser assim? Não, mas é mais fácil passar a mensagem e despertar emoções. Ajudar a mudar a cultura das empresas exige tempo e soa a complacência.
Não obstante, será o tempo a julgar a credibilidade: os casos e as coimas têm de resistir aos tribunais e, mais do que isso, devem mostrar coerência, equilíbrio e maturidade.
O país também está a mudar.
Sem que seja culpa de ninguém, vivemos hoje tempos extraordinários e só conseguimos uma política titubeante. Passámos do "medo de existir" de José Gil ao "medo". A falta de rasgo, daquele golpe de asa que nos impele para a frente e que nos distinguiu no passado cede perante a navegação à vista de uma política amedrontada. Não há tempo para questionar e os factos não interessam. É a cultura do medo travestida de autoridade.
Uns até já reclamam penas e coimas mais severas. Outros entendem que é necessário um dispositivo policial em cada ponte e esquina para nos fazer cumprir a falta de norte. Somos todos infratores por presunção e temos de ser disciplinados. Isto não é um problema de esquerda ou de direita, é só um problema.
[*]"‘O teu problema’, disse Axe, ‘é que continuas a tentar responder à pergunta.?
‘Mas não é esse o objetivo?’ - respondi.
‘Não, Barack’, disse o Axe, ‘não é esse o objetivo. O objetivo é conseguires passar a tua mensagem. Quais são os teus valores? Quais são as tuas prioridades? É isso que interessa às pessoas. Olha, metade do tempo o moderador está apenas a usar a pergunta para te apanhar em falso. O teu trabalho é evitar cair na armadilha. Pega em qualquer questão que te façam, diz qualquer coisa para parecer que respondeste…e a seguir fala do que queres falar.’
‘Isso é uma treta’, disse eu.
‘Pois é’, respondeu ele."
Obama sentia-se frustrado: "Por muito que não goste, as pessoas são movidas por emoções, não por factos" (in A Promised Land, tradução livre).
"‘Your problem’, Axe said, ‘is you keep trying to answer the question’.
‘Isn’t that the point?’ - I said.
‘No, Barack’, Axe said, ‘that is not the point. The point is to get your message across. What are your values? What are your priorities? That’s what people care about. Look, half the time the moderator is just using the question to try to trip you up. Your job is to avoid the trap they’ve set. Take whatever question they give you, give’em a quick line to make it seem like you answered it…and then talk about what you want to talk about’.
‘That’s bullshit’, I said.
‘Exactly’, he said."
Obama sentia-se frustrado: "Whether I liked it or not, people are moved by emotion, not facts" (in A Promised Land, 2021) [*tradução no final do texto].
Tem a AdC razão? As empresas cometeram mesmo aquelas infrações? Os tribunais já se pronunciaram?
Na verdade, não interessa. Podia passar horas a discutir o mérito de cada caso, a interpretação da lei, a política de enforcement e de coimas, os direitos de defesa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça ou a Constituição. Mas não interessa. Isso são factos. As empresas já foram condenadas e de certeza que prevaricaram. Na imprensa e nas redes sociais encontraremos a prova: bem feito! A coima até devia ser maior! Deviam ser todos presos!
Mas a verdade é que não se pode criticar a AdC pela forma como está a jogar este jogo. Está a ganhar e com ampla margem. A AdC está a passar uma mensagem clara: a concorrência existe e deve ser levada a sério.
Este ano demonstrou que, com ou sem pandemia, a AdC continuará a fazer buscas, a procurar novos casos, empresas grandes e coimas ainda maiores.
Os casos são todos à prova de tribunal? Provavelmente não.
Nos últimos anos, as empresas envolvidas investiram de modo significativo na prevenção das práticas de que são acusadas? Provavelmente também não.
"Compliance" continua a ser uma palavra sem a capacidade de despertar as mesmas paixões que uma coima de milhões. Prevenir parece ainda um excesso de zelo, uma coisa de multinacionais. Para muitas empresas as coimas da AdC são como a covid: só acontece aos outros e só mata velhinhos. Mas as coimas de milhões são reais e alguém vai pagar.
Para jogar este jogo as empresas têm de conhecer bem as regras, antecipar-se e, claro, defender-se.
A AdC continua a apostar tudo na confortável almofada legal das infrações per se ou de perigo que os Tribunais da União Europeia e os especialistas vão criticando. É proibido porque sim e pode custar milhões também porque sim, mesmo que inexista qualquer impacto no mercado. E as empresas continuam a não perceber as regras do jogo. O preço é alto: paga-se primeiro e discute-se os factos depois.
Tinha de ser assim? Não, mas é mais fácil passar a mensagem e despertar emoções. Ajudar a mudar a cultura das empresas exige tempo e soa a complacência.
Não obstante, será o tempo a julgar a credibilidade: os casos e as coimas têm de resistir aos tribunais e, mais do que isso, devem mostrar coerência, equilíbrio e maturidade.
O país também está a mudar.
Sem que seja culpa de ninguém, vivemos hoje tempos extraordinários e só conseguimos uma política titubeante. Passámos do "medo de existir" de José Gil ao "medo". A falta de rasgo, daquele golpe de asa que nos impele para a frente e que nos distinguiu no passado cede perante a navegação à vista de uma política amedrontada. Não há tempo para questionar e os factos não interessam. É a cultura do medo travestida de autoridade.
Uns até já reclamam penas e coimas mais severas. Outros entendem que é necessário um dispositivo policial em cada ponte e esquina para nos fazer cumprir a falta de norte. Somos todos infratores por presunção e temos de ser disciplinados. Isto não é um problema de esquerda ou de direita, é só um problema.
[*]"‘O teu problema’, disse Axe, ‘é que continuas a tentar responder à pergunta.?
‘Mas não é esse o objetivo?’ - respondi.
‘Não, Barack’, disse o Axe, ‘não é esse o objetivo. O objetivo é conseguires passar a tua mensagem. Quais são os teus valores? Quais são as tuas prioridades? É isso que interessa às pessoas. Olha, metade do tempo o moderador está apenas a usar a pergunta para te apanhar em falso. O teu trabalho é evitar cair na armadilha. Pega em qualquer questão que te façam, diz qualquer coisa para parecer que respondeste…e a seguir fala do que queres falar.’
‘Isso é uma treta’, disse eu.
‘Pois é’, respondeu ele."
Obama sentia-se frustrado: "Por muito que não goste, as pessoas são movidas por emoções, não por factos" (in A Promised Land, tradução livre).
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