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“And now for something completely different”*

Uma cultura de concorrência não se constrói com mais repressão, coimas e likes; é necessário, sim, instruir processos rápidos, justos e que vinguem em tribunal pelo mérito.

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"And now for something completely different" é uma sátira genial dos Monty Python à sociedade, à política e ao nosso estilo de vida, muitas vezes a reboque de modas. Num dos episódios um grupo de membros da alta sociedade compete, de forma desastrosa, numa corrida de obstáculos que não conseguem superar. A corrida começa e não sabem sequer que rumo tomar. Pelo meio devem disparar contra coelhos, já amarrados, mas falham os tiros todos. A prova acaba com cada um a tentar matar-se com uma pistola, o que também teimam em falhar (visto tem mais piada).

"And now for something completely different": uma empresa condenada a pagar milhões por uma infração de concorrência que não se consegue soletrar é claramente mais posh que ver um empresário condenado a prisão.

E na procura dos milhões as autoridades precisarão de mais poder. Está em vias de ser aprovada no Parlamento uma proposta de lei (99/XIV/2ª) que transpõe uma diretiva que visa reforçar os poderes das autoridades de concorrência (Diretiva ECN+).

Os problemas são vários e não posso deixar de enunciar alguns pontos que ilustram a falta de norte da Comissão, da Autoridade da Concorrência (AdC) e, se nada for feito, também do nosso Parlamento.

1. Buscas: a AdC já tinha os mais amplos poderes para realizar buscas nas empresas. Todavia, a AdC passa agora a ter carta-branca para apreender tudo, de preferência mais rapidamente e, não vá a covid tecê-las, continuar as buscas (leia-se, a pesquisa e seleção de prova) no conforto das instalações da AdC.

Mas calma. A empresa tem "direito" a ver no final o que foi apreendido. Não está mal. Por que razão haveria a empresa de querer controlar a busca, ter o seu advogado presente, verificar que o mandado judicial não foi excedido e que as fotos dos responsáveis da empresa nas Maldivas (ou outras) não foram vistas?

Regressa-se à pesca de arrasto, e que tem dado resultados brilhantes, como são exemplos os megaprocessos-crime que enchem os telejornais (porque nunca mais acabam) ou, no caso da AdC, o cartel dos bancos, com buscas em 2012 conduzidas por um juiz de instrução e que em 2021 ainda aguarda o início de julgamento, mais perto da prescrição.

A pergunta parece evidente: o que ganha a AdC em "poder" (em desrespeito pelos direitos de defesa das empresas) apreender terabytes de informação, vistos depois às escondidas da empresa e dos advogados e que levarão anos a analisar? Vai detetar e prevenir mais cartéis? Os tribunais estão preparados? Alguém sabe realisticamente quantos documentos consegue um técnico avaliar por dia, mesmo usando o melhor software ou o software também já produz a decisão e coima?

2. Aumento das coimas: a AdC já podia impor coimas até 10% do volume de negócios anual realizado em Portugal pela empresa infratora (as últimas coimas aplicadas somaram 300 milhões de euros). Parece pouco. Não vá uma empresa querer continuar a operar em Portugal depois de um processo e o melhor é impor uma coima à casa-mãe para assim fechar o negócio de vez no nosso país.

Na prática, a AdC passa agora a poder aplicar coimas com base no volume de negócios mundial de um grupo económico por uma infração cometida por uma subsidiária em Portugal. Para além da avaliação da legalidade e constitucionalidade da medida, deve perguntar-se se era necessário e quais os limites.

3. Sigilo do advogado da empresa: acabou. A AdC passa a poder ir a uma empresa e começar a busca pelos computadores do departamento jurídico. Deveria talvez emitir orientações sobre a forma legal de organizar a informação em pastas para facilitar as buscas. Mal andamos se a grande estratégia para a deteção e prevenção de infrações tem de se fazer à custa do sigilo do advogado.

Se o Parlamento aprovar a proposta às pressas, estaremos a condenar os próximos anos de enforcement em Portugal a maior litigância, maior morosidade, falta de capacidade da AdC e dos tribunais para lidar com grandes volumes de informação (desnecessária), e a legitimar um grave retrocesso em matéria de direitos de defesa. Veremos que autoridade dará o primeiro tiro no pé.

Uma cultura de concorrência não se constrói com mais repressão, coimas e likes; é necessário, sim, instruir processos rápidos, justos e que vinguem em tribunal pelo mérito. O resto é só política, e má política de administração da justiça.

(*)traduzido à letra: "E agora, para algo completamente diferente"
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