Opinião
Negociantes eleitos
Imagine que é um membro eleito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América, durante o debate sobre a reforma do sistema de saúde, que foi aprovado em 2010.
Num encontro da Câmara dos Representantes, aprendeu antes de qualquer outra pessoa, que uma proposta que preveja uma opção de seguros públicos - um programa que iria competir com os seguros privados - não seria incluída. Esta informação vai ter um grande impacto nos preços das acções das companhias de seguros de saúde. Podem as acções destas empresas ser transaccionadas antes de esta informação chegar ao domínio público?
Em termos morais, é difícil separar este exemplo dos casos tradicionais de operações com informação privilegiada nas empresas. Contudo, nenhuma lei proíbe esta prática. O Congresso dos Estados Unidos - onde reside o poder legislativo do país - efectivamente dispensou-se das regras habituais de operações com informação privilegiada. O Congresso e os Supremo Tribunal dos Estados Unidos são as únicas agências federais nas quais os funcionários podem, sem restrições, negociar acções com base em informações que não são públicas. Todos os outros funcionários do governo norte-americano que efectuem transacções com informação privilegiada do estilo acima descrito estão a actuar de forma ilegal.
Mas os membros do Congresso não podem apenas negociar legalmente com informações confidenciais, como o fazem apesar dos custos que isso poderá ter para as suas reputações. O programa de televisão norte-americano "60 Minutos" avançava recentemente que vários membros que actualmente estão no Congresso utilizaram alegadamente informação confidencial que adquiriram através do desempenho das suas funções para ganhos pessoais. Enquanto a relação entre informação privilegiada e a negociação é difícil de provar (como é na maioria dos casos de utilização de informação privilegiada), a altura em que acontecem é altamente suspeita.
Mas é difícil contestar este "privilégio" do Congresso nos Estados Unidos, em parte porque o conceito de informação privilegiada é um conceito ambicioso na lei norte-americana, sem definições estatutárias dos termos "fonte interna", "informações privilegiadas" ou "operações com informações privilegiadas".
Por outro lado, a União Europeia tentou definir estes termos em directrizes com o objectivo de proibir esta prática. De acordo com a directiva emitida em 1989, "uma fonte interna é quem, devido à sua relação com o administrador, director, funcionário ou mesmo um grande accionista de uma empresa, possui informação privilegiada (factos materiais não públicos) e sabendo disso utiliza essa informação privilegiada para adquirir ou dispor de acções relacionadas com a informação para o seu próprio benefício ou de outros".
Mas esta definição, ainda que franca, deixa um grande lacuna para os legisladores. Por exemplo, cria a possibilidade de os deputados britânicos poderem legalmente negociar acções através de informação adquirida no decorrer das suas actividades habituais, porque eles não estão classificados como "fonte interna".
Em 2004, um artigo publicado no "Journal of Financial and Quantitative Analysis" mostrava que os senadores dos Estados Unidos que negociavam acções venceram em 12% por ano o mercado. Dado que os melhores gestores hedge-fund consideram que é difícil obter resultados comparáveis, nós temos de concluir que ou estes senadores são melhores que os gestores dos hedge-fund ou que eles beneficiaram de informação privilegiada.
É ainda mais preocupante que a utilização de informação privilegiada por parte de representantes eleitos seja uma indústria de política inteligente que actualmente está a florescer em Washington, Bruxelas e outras grandes capitais. Nos Estados Unidos, um ex-membro do Congresso e os seus funcionários obtiveram informações privilegiadas e venderam-nas a gestores de hedge-fund, no valor de 100 milhões de dólares anuais.
A proposta que visa banir a utilização de informações privilegiadas por parte de membros do Congresso norte-americano tem vindo a arrastar-se desde 2006 no Congresso. Mas aparentemente o programa "60 minutos" conseguiu que o tema voltasse a ser alvo de atenção: apenas quatro dias após a transmissão, o número de apoiantes da proposta aumentou de nove para 57 e foi marcada uma sessão, para o mês seguinte, para discutir a legislação.
Porém, o problema não é simplesmente uma isenção do Congresso à lei sobre a utilização de informação privilegiada. A verdadeira questão é que o Congresso norte-americano - tal como muitas outras legislaturas - está dependente de regras que são bastante diferentes das que são impostas aos cidadãos comuns. Em particular, as contas, a transparência e as regras relativas às fraudes que regem as empresas não se aplicam aos representantes eleitos.
É um problema que vai para além da utilização de informação privilegiada. Se os executivos das empresas mentem durante uma conferência telefónica, eles podem ser processados. Por outro lado, os políticos mentem tanto durante as campanhas eleitorais como quando já a desempenhar funções e são poucas ou nenhumas as consequências. Se o governo dos Estados Unidos tivesse sido obrigado a cumprir as mesmas regras contabilísticas que o sector privado tem, seria obrigado a consolidar Fannie Mae e Freddie Mac - grandes empresas de hipotecas que foram financiados pelo governo durante a mais recente crise financeira - e reportar todos os passivos contingentes ao valor de mercado.
Em vez de apenas alargar a lei que diz respeito à utilização de informação privilegiada ao Congresso norte-americano (ou a outros legisladores), os cidadãos deviam exigir que todas as restrições e requisitos de apresentação de relatórios impostos ao sector privado se aplicassem automaticamente as representantes eleitos. Isto iria fazer com que estas legislaturas fossem mais credíveis e as suas leis mais justas.
Luigi Zingales é professor de empreendedorismo e finanças na Universidade de Chicago e autor do livro "A Capitalism for the People".
© Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro
Em termos morais, é difícil separar este exemplo dos casos tradicionais de operações com informação privilegiada nas empresas. Contudo, nenhuma lei proíbe esta prática. O Congresso dos Estados Unidos - onde reside o poder legislativo do país - efectivamente dispensou-se das regras habituais de operações com informação privilegiada. O Congresso e os Supremo Tribunal dos Estados Unidos são as únicas agências federais nas quais os funcionários podem, sem restrições, negociar acções com base em informações que não são públicas. Todos os outros funcionários do governo norte-americano que efectuem transacções com informação privilegiada do estilo acima descrito estão a actuar de forma ilegal.
Mas é difícil contestar este "privilégio" do Congresso nos Estados Unidos, em parte porque o conceito de informação privilegiada é um conceito ambicioso na lei norte-americana, sem definições estatutárias dos termos "fonte interna", "informações privilegiadas" ou "operações com informações privilegiadas".
Por outro lado, a União Europeia tentou definir estes termos em directrizes com o objectivo de proibir esta prática. De acordo com a directiva emitida em 1989, "uma fonte interna é quem, devido à sua relação com o administrador, director, funcionário ou mesmo um grande accionista de uma empresa, possui informação privilegiada (factos materiais não públicos) e sabendo disso utiliza essa informação privilegiada para adquirir ou dispor de acções relacionadas com a informação para o seu próprio benefício ou de outros".
Mas esta definição, ainda que franca, deixa um grande lacuna para os legisladores. Por exemplo, cria a possibilidade de os deputados britânicos poderem legalmente negociar acções através de informação adquirida no decorrer das suas actividades habituais, porque eles não estão classificados como "fonte interna".
Em 2004, um artigo publicado no "Journal of Financial and Quantitative Analysis" mostrava que os senadores dos Estados Unidos que negociavam acções venceram em 12% por ano o mercado. Dado que os melhores gestores hedge-fund consideram que é difícil obter resultados comparáveis, nós temos de concluir que ou estes senadores são melhores que os gestores dos hedge-fund ou que eles beneficiaram de informação privilegiada.
É ainda mais preocupante que a utilização de informação privilegiada por parte de representantes eleitos seja uma indústria de política inteligente que actualmente está a florescer em Washington, Bruxelas e outras grandes capitais. Nos Estados Unidos, um ex-membro do Congresso e os seus funcionários obtiveram informações privilegiadas e venderam-nas a gestores de hedge-fund, no valor de 100 milhões de dólares anuais.
A proposta que visa banir a utilização de informações privilegiadas por parte de membros do Congresso norte-americano tem vindo a arrastar-se desde 2006 no Congresso. Mas aparentemente o programa "60 minutos" conseguiu que o tema voltasse a ser alvo de atenção: apenas quatro dias após a transmissão, o número de apoiantes da proposta aumentou de nove para 57 e foi marcada uma sessão, para o mês seguinte, para discutir a legislação.
Porém, o problema não é simplesmente uma isenção do Congresso à lei sobre a utilização de informação privilegiada. A verdadeira questão é que o Congresso norte-americano - tal como muitas outras legislaturas - está dependente de regras que são bastante diferentes das que são impostas aos cidadãos comuns. Em particular, as contas, a transparência e as regras relativas às fraudes que regem as empresas não se aplicam aos representantes eleitos.
É um problema que vai para além da utilização de informação privilegiada. Se os executivos das empresas mentem durante uma conferência telefónica, eles podem ser processados. Por outro lado, os políticos mentem tanto durante as campanhas eleitorais como quando já a desempenhar funções e são poucas ou nenhumas as consequências. Se o governo dos Estados Unidos tivesse sido obrigado a cumprir as mesmas regras contabilísticas que o sector privado tem, seria obrigado a consolidar Fannie Mae e Freddie Mac - grandes empresas de hipotecas que foram financiados pelo governo durante a mais recente crise financeira - e reportar todos os passivos contingentes ao valor de mercado.
Em vez de apenas alargar a lei que diz respeito à utilização de informação privilegiada ao Congresso norte-americano (ou a outros legisladores), os cidadãos deviam exigir que todas as restrições e requisitos de apresentação de relatórios impostos ao sector privado se aplicassem automaticamente as representantes eleitos. Isto iria fazer com que estas legislaturas fossem mais credíveis e as suas leis mais justas.
Luigi Zingales é professor de empreendedorismo e finanças na Universidade de Chicago e autor do livro "A Capitalism for the People".
© Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro
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