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Mediocridade impante e imune

A levíssima revista «Única», do pesadíssimo «Expresso» incluiu, no último número [sábado, 13, Maio, p.p.], uma instrutiva «reportagem» do Bairro Alto, assinada por um dito Bernardo Mendonça.

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Com infatigável perseverança têm-nos inculcado a ideia de que somos pouco dados a gostar de nós mesmos. E um pouco invejosos. Aqui, a citação da última palavra de «Os Lusíadas», dá sempre jeito. Acho que éramos muito bons de briga, de cama, de copo e de audácia. Esgotámo-nos com os Descobrimentos. Das terras longínquas vinha tudo o que seduzia o nosso ócio. Vendíamos o que a outros sacávamos e auferíamos os lucros de um trabalho que não executávamos. Os reis e as classes possidentes davam o exemplo. D. Manuel, o Primeiro, é o caso exemplar de um imbecil tornado Venturoso pelos acasos da fortuna. Porém, as Navegações haviam-nos tornado muito buliçosos. Não esquecer que os navegadores eram recrutados entre correços, assassinos e ladrões condenados, que se acoitavam em Alfama, bairro por onde poucos se aventuravam a caminhar. D. João, o Terceiro, não apreciava metáforas e decidiu aquietar-nos: pediu a Inquisição ao Papa e, com lenta perícia, queimou os nossos eventuais alvoroços. Liquidaram-nos a acção e conduziram-nos à contemplação do supersticioso. Não são malhas que a História tece. São astúcias do Poder e ignorâncias de quem persiste em rejeitar as responsabilidades da cidadania.

A profundidade da nossa amargura ameaça precipitar-nos noabismo, ou seja: adormecermos nos braços de Espanha. Não da Espanha bailarina, das Pepita Pellegrin e das Cármen Lafaguara, que enchiam de gula os olhos dos latifundiários alentejanos e lhes esvaziavam os bolsos, entre castanholas e champanhe saloio, adejando os braços e sacudindo seios e ancas no Maxime, no Fontória, no Arcádia e no Cristal. O abraço espanhol é o dos negócios e da finança, da Banca e do «comércio livre».

A decadência nacional encontra explicações em textos doutos, e em graves comentadores que, de todo, desconhecem os prestígios do silêncio e o valor da humildade. Dão com o sarrafo nas nossas costas, ao preço de 250 euros o artigo impresso. Tese: o português é madraço, indigente mental, subserviente. Antítese: apenas no estrangeiro, sob as ordens do estrangeiro o português trabalha, realiza, cria. Síntese: venham os estrangeiros, de açoite nas mãos e cenoura na frente.

Surge agora uma sondagem com estonteantes resultados: 85 por cento dos portugueses estão-se marimbando para Portugal. E se o País fosse uma marca não obteria a mais ínfima das credibilidades. Como é que se pretende inverter esta funesta tendência, quando se tornam públicas as sumptuosas reformas de «gestores» públicos, de altos funcionários da Administração; as escandalosas sinecuras atribuídas a ex-governantes; os lugares excessivamente remunerados a antigos membros de governo - e se conhecem as dificuldades de milhões e milhões de portugueses, a «arraia meuda», do Fernão Lopes?

A «nossa» pátria só o é sentimentalmente. João de Barros (o das «Décadas): «País padrasto, pátria madastra». Cavaleiro de Oliveira (século XVIII): «A minha pátria é o local onde sou feliz e livre». Oliveira Martins esclareceu: «Fizemos uma nação que nos não pertence, e um país que é dos outros». Quem são os «outros»? Aqueles que, segundo Garrett, produzem pobres, desgraçados, famintos. Quanto custa um rico a um país?, perguntou ele, nas «Viagens na Minha Terra». E disse-o, em 1845, três anos antes do «Manifesto Comunista», de Marx e Engels: «E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»

Numa interessante entrevista ao suplemento «Pública», do diário «Público» [domingo, 14, Maio, p.p.], o historiador António Hespanha adverte: «Este país é uma porcaria para a maior parte dos portugueses, e é um país óptimo para uma pequena parte. E os portugueses sabem isso». Esta a causa da «desmobilização»? Talvez. A verdade é que lá fora somos dos melhores porque nos incentivam, ao mesmo tempo que estruturam o trabalho e reorganizam permanentemente a sociedade. Aqui, os que resistem, são maltratados, vilipendiados. A volúpia do mesquinho na mesquinhez traça um diâmetro no círculo infernal da nossa miséria.

Temos perdido todas as oportunidades como temos falhado todas as revoluções, desde 1383 até 1974. As forças da manutenção das coisas e do sistema não possuem a vocação da paz interior. Os possidentes podem ser medíocres, mas são eficazes. Pergunte-se a um desses «gestores» muito «mediáticos» ou a um qualquer governante em actividade quem foram os reis da Segunda Dinastia, ou quem escreveu «A Casa Grande Romarigães», ou quem filmou «Doiro, Faina Fluvial»; quem é o pintor d’»O Almoço do Trolha», ou, ainda, que são os «estrangeirados»? Matéria insonora para os ouvidos de lata desses senhoritos. Porém, nas pequenas manipulações, na mentira, na hipocrisia eles são incomparavelmente hábeis. Dir-se-á: o «gestor» não precisa de possuir cultura geral. Olhe que precisa!

Há anos, Eduardo Lourenço interrogava-se: «Que povo somos ou que somos como povo?»

NOTA ÚNICA POR CAUSA DAS COISAS

A levíssima revista «Única», do pesadíssimo «Expresso» incluiu, no último número [sábado, 13, Maio, p.p.], uma instrutiva «reportagem» do Bairro Alto, assinada por um dito Bernardo Mendonça. Texto deplorável, de problemática legibilidade. O cavalheiro afirma, peremptório, que, «há 30 anos era a colina dos vadios, fadistas e prostitutas. Há 20, morada restrita dos intelectuais, artistas e poetas». A tolice é notória, o insulto evidente, a calúnia abjecta, o analfabetismo de palmatória. Segundo o Mendonça, no bairro só residia gente do piorio. Gente honrada, jamais, em tempo algum. Acaso fossem vivos os meus amigos Zeca Machado e Porfírio Silvério, gente ali nascida e criada, a coisa resultaria num asseado par de murros. Além do escoicinhante tolejo, o audaz Mendonça nem uma linha dedica ao facto de que parte importante da Imprensa portuguesa ali teve poiso, guarida, glória e grandeza. Ilustrando o armorial do ofício, gente como Rodrigues Sampaio, Norberto Lopes, Norberto de Araújo, Artur Portela, Artur Inez, Acúrcio Pereira, Manuela de Azevedo, Francisco Mata, Carlos Ferrão, José de Freitas, Urbano Carrasco, no Bairro Alto fizeram a parte mais estelar das suas vidas profissionais. Há trinta anos, um dos patrões de jornais era Francisco Pinto Balsemão, actual dono do «Expresso» e, então, proprietário do «Diário Popular» e ali com banca diária de jornalista. Não consta que praticasse a vadiagem ou que se dedicasse aos cantares do fado. Mendonça, impávido iletrado, ignora, ainda, que os maiores nomes da cultura portuguesa ali viram a luz do dia (Camilo Castelo Branco, por exemplo), ou ali moraram: Tolentino, Bocage, O’Neill. O texto é mal escrito, mal pensado, mal resolvido. Feito à matroca - imagem reflexa da mediocridade impante e impune que pelo País grassa.

Interrogo-me: Que jornalistas temos? Que raio de jornalismo é este?

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