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Opinião
29 de Dezembro de 2011 às 23:32

Levar a fé a sério

O termo "Primavera Árabe" já é fortemente debatido. Será que as revoluções no mundo árabe pressagiam gloriosos dias de Verão ou uma travessia por um Inverno desolador? Uma coisa é certa: a influência da religião e da fé na determinação do resultado.

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Analisemos a escala daquilo que está a acontecer. No Médio Oriente e no Norte de África, os partidos islamistas estão em ascensão. As divisões entre os sunitas e os xiitas estão também na linha da frente. O terrorismo, baseado numa perversão da religião, está a desfigurar a política não só em locais familiares, mas também na Nigéria, Rússia, Cazaquistão, Filipinas e por esse mundo fora. Mais de metade dos actuais conflitos mundiais têm uma dimensão predominantemente religiosa. Hoje em dia, a maior parte (mas não todas) das crenças religiosas contém grupos extremistas, todos eles capazes de provocarem a discórdia junto de comunidades anteriormente estáveis. É certo que grande parte deste extremismo se baseia numa perversão do Islão; mas essas perversões da fé são também frequentemente direccionadas contra os muçulmanos. Nalgumas regiões da Europa, a islamofobia rivaliza agora com o anti-semitismo e comporta um potente e perigoso atractivo político.

Em suma, a religião importa. Há três anos e meio, quando criei uma fundação dedicada a melhorar as relações inter-religiosas, houve quem considerasse a ideia quixotesca ou completamente estranha: por que razão quereria um antigo primeiro-ministro fazer tal coisa?

Fi-lo por uma razão muito simples. A minha experiência como primeiro-ministro ensinou-me que nenhum dos problemas do Médio Oriente e não só - incluindo-se o Irão, Afeganistão, Paquistão e Somália - pode ser compreendido se não se compreender a importância da religião. Não me refiro à política da religião, mas sim à religião como religião. Não podemos encarar a influência da crença religiosa em termos puramente laicos. Temos de a encarar como uma verdadeira questão de fé.

Com efeito, uma debilidade fundamental da política externa, especialmente no Ocidente, está no pressuposto de que as soluções políticas, por si só, abrem caminho para o futuro. Não é verdade. Quem sente que a sua fé o compele a agir no sentido de destruir o respeito mútuo tem de ser persuadido de que essa é uma leitura errada da sua fé; caso contrário, essa compulsão baseada na fé irá sempre superar os argumentos políticos laicos.

Debrucemo-nos sobre o Médio Oriente e o Norte de África de hoje. Gostemos ou não, a Irmandade Muçulmana e outros partidos políticos irão, muito possivelmente, dominar. Eles existem há muito tempo, estão bem organizados, estão profundamente enraizados nas comunidades e, acima de tudo, estão fortemente motivados - uma combinação vencedora em qualquer parte do mundo. Contra eles estão as políticas desacreditadas dos velhos regimes e grupos liberais bem intencionados, e frequentemente numerosos, mas altamente desorganizados.

O risco com que nos deparamos é suficientemente fácil de descrever. O desafio para estas democracias emergentes é permanecerem democráticas durante os traumas da abrangente mudança. Muito em particular, as suas economias precisam de reformas, de abertura e de crescimento, de modo a atenderem às expectativas crescentes dos seus cidadãos.

De facto, a região conta com algumas das populações mais jovens do mundo, sendo a idade média normalmente inferior a 30 anos. A população do Egipto ronda os 30 milhões de pessoas na década de 1950; actualmente, é de 90 milhões. As populações jovens e cheias de aspirações, cujas críticas ao velho regime eram tão económicas quanto políticas, precisam de reaver o seu sector turístico, precisam que os seus empreendedores sintam confiança e precisam de investidores estrangeiros ávidos por aplicarem o seu dinheiro. Essas populações precisam de reformas fundamentais ao nível da educação e do bem-estar social. E os novos dirigentes políticos precisam de saber que, se não tiverem êxito, o povo tem o direito de os derrubar.

Mas a democracia não tem apenas a ver com eleições livres e com a norma constitucional de defesa da liberdade. Tem a ver com a liberdade de expressão, com a liberdade religiosa e com mercados que - apesar de regulados - sejam também livres e previsíveis. Por outras palavras, a democracia não é um mero sistema de votação, mas sim uma atitude de mente aberta.

Essa distinção - aberta versus fechada - é hoje em dia tão politicamente saliente como as tradicionais distinções que se fazem entre a Esquerda e a Direita. Encaramos a globalização - com a tecnologia, a comunicação, a migração e as viagens a aproximar-nos uns dos outros - como algo que deve ser acatado mas posto a funcionar de forma justa, ou como uma ameaça à nossa forma de vida tradicional, sendo por isso nosso dever resistir-lhe? Estou convicto de que o futuro pertence a quem tem a mente aberta. Mas quem tem uma visão estreita das coisas exerce também um poderoso fascínio visceral e a religião alimenta esse fascínio.

Existem duas faces da fé no nosso mundo de hoje. Uma é observável não apenas nos actos de extremismo religioso, mas também no desejo de as pessoas religiosas usarem as suas crenças como um emblema de identidade em oposição a quem é diferente. A outra face é definida por extraordinários actos de sacrifício e compaixão - como, por exemplo, cuidar dos doentes, incapacitados ou indigentes.

Uma face tem a ver com ajudar os outros; a outra face não os aceita. Uma face reconhece que todos os seres humanos merecem igual dignidade e procura construir pontes de entendimento entre crenças. A outra face encara os que não partilham da sua fé como sendo pessoas descrentes e sem valor, e procura construir uma muralha de protecção em seu redor ou até mesmo ser activamente hostil perante os "outsiders".

Esta luta entre as duas faces da fé é travada no mundo inteiro. Aquilo de que precisamos é de plataformas de compreensão, respeito e inclusão, em apoio à visão da fé com uma mente aberta.

A educação tem um papel vital a desempenhar. Quantos cristãos sabem que Jesus é venerado pelos muçulmanos como um profeta ou que foi através do Islão que os pensadores cristãos do século XI reaprenderam a importância de Aristóteles e de Platão? E quantos muçulmanos entendem plenamente a Reforma Cristã e os seus ensinamentos, aos crentes, sobre filosofia e religião? Quantos muçulmanos ou cristãos estão verdadeiramente cientes da sua dívida para com o judaísmo? E será que nós, no Ocidente, sabemos avaliar realmente a verdadeira natureza da crença hindu ou da crença budista? Compreendemos de que forma o sikhismo desenvolveu a sua extraordinária abertura a todas as crenças e sabemos quem são os bahai e em que acreditam?

A questão é que a fé é cultura; e no mundo actual, as pessoas de culturas diferentes estão a entrar em contacto umas com as outras a um ritmo sem precedentes. Se isso provoca harmonia ou discórdia só vai depender da sua mentalidade - aberta ou fechada. Poderá uma forte crença religiosa coexistir com tal pluralismo?

Esta é uma questão-chave da nossa actualidade. Ainda assim, muitas pessoas de mente aberta permanecem curiosamente passivas perante o extremismo religioso. Por vezes, ignoramo-lo, esperando poder tratá-lo como outra coisa que não religião. Por vezes, desistimos e abraçamos o secularismo. A primeira atitude ignora a essência do problema; a segunda mina a fé, que continua a ter um papel muito importante a desempenhar no processo civilizador da gobalização.

Em resumo, precisamos de uma democracia que encare a religião de forma amigável e precisamos de uma religião que encare a democracia de forma amigável. Nesta época de celebração cristã, esta é uma mensagem importante que Jesus Cristo, estou certo, teria aprovado.

Tony Blair, que foi primeiro-ministro do Reino Unido, é o fundador da Tony Blair Faith Foundation (www.tonyblairfaithfoundation.org).

© Project Syndicate, 2011.

www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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