Opinião
Leitura a quente
Durante o dia, com a porta aberta e as ventoinhas ligadas no máximo, o atelier atinge por vezes os 40°. O espaço, com paredes de tijolo vermelho carcomido e janelas mal calafetadas, é demasiado grande para o ar condicionado.
Por aqui, ser criativo significa mesmo 10% de inspiração e 90% de transpiração. À noite, em casa, o calor também não esmorece, não deixa dormir, mas isso nem é mau de todo. A insónia é boa para a leitura.
Recentemente comprei, na língua original, a obra toda de Charles Bukowski. Já tinha lido a maioria em traduções, mas a escrita criativa do autor, cheia de neologismos, muito palavrão e idiossincrasias à mistura, aconselha a ler no original.
Bukowski será pouco conhecido em Portugal. As traduções são raras. Mas é certamente um dos mais fascinantes escritores do século 20. De origem alemã e, por isso, obtusamente referenciado nalgumas biografias como escritor alemão, Bukowski , mais do que americano, é um produto da Califórnia libertária.
A Los Angeles das suas deambulações não é habitada pelas estrelas de Hollywood, nem pelos elegantes corpos bronzeados, mas por pobres, prostitutas, vidas vagabundas, sórdidas, e por essas alcoólicas "moscas de bar" que deram título ao filme Barfly com Mickey Rourke. O enredo deste filme, que se resume a beber e andar à pancada, diz tudo sobre a temática linear de Bukowski. Na verdade, numa escrita autobiográfica o autor resume a sua existência à procura de duas coisas. Bebida e sexo. Nas maiores quantidades possíveis. É claro que, felizmente para nós, arranjou tempo para outra atividade. A da escrita.
À partida podemos perguntar o que pode haver de interessante num interminável relato de bebedeiras e engates. A vida sórdida, quando exemplar, e é este o caso, tem o dom de questionar a ordem geral das coisas. O vagabundo antissocial põe em causa as normas e transforma as vidas correntes num exercício profundamente patético.
De qualquer modo, a vida de Bukowski não é exemplo para ninguém. Ele próprio tratou de deixar o aviso na lápide tumular: "não tentem". Detestado pela moral dominante e pelas existências compostas, os seus livros foram e continuam a ser banidos por pais e instituições. Por vezes mesmo objeto de censura. Mas a marca ficou. Única e inimitável.
Frequentemente associado à chamada Beat Generation, de Ginsberg, Burroughs ou Kerouac, Bukowski tem na verdade pouco a ver com esta. Não chega à escrita infame por via da cultura, mas porque é assim mesmo. As suas novelas estão recheadas de picardias dirigidas a estes três escritores que considera uns snobs. Detesta e não frequenta o meio cultural. Quando Sartre, que o tinha considerado o maior poeta americano vivo, de passagem por Los Angeles o quis conhecer, ele declinou porque tinha uma garrafa para acabar.
Não sendo um intelectual tem gostos cultos, na música de Mahler e Rossini que atenuam as suas monumentais ressacas, na poesia de Céline de quem é um grande admirador. A ponto de o tornar na personagem central da derradeira novela, Pulp, um policial absolutamente delirante onde nem faltam alguns extraterrestres.
Para além da bebida o sexo é o grande tema da literatura de Bukowski. Mulherengo, abusador, amoral, não perde uma oportunidade de levar as mulheres dos amigos para cama, encara a sexualidade de forma prática e desconcertante. Quase mecânica. Não há romantismo, nem erotismo. Não há misoginia, como alguns pretendem. Bukowski gosta mesmo de mulheres ainda que só para o ato. E não é machista, no sentido exibicionista, já que muitos dos relatos descrevem a impotência por excesso de álcool. No livro Women uma namorada recomenda: se queres beber bebe, mas se queres sexo não bebas. Ao que ele responde: mas eu quero as duas coisas.
Bukowski é crítico, social e culturalmente, mas nunca é moralista. Em momento algum tenta converter os outros a causas ou ideias. A novela "Correios", das poucas traduzidas em português, relata os anos em que trabalhou a distribuir cartas. Descreve o nonsense e estupidez do trabalho, as rotinas alucinadas, a burocracia, a depravação das chefias. Resulta num panfleto contra a ideologia do trabalho. Mas sem proselitismo. A descrição dos factos é suficientemente poderosa.
Este artigo foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
Recentemente comprei, na língua original, a obra toda de Charles Bukowski. Já tinha lido a maioria em traduções, mas a escrita criativa do autor, cheia de neologismos, muito palavrão e idiossincrasias à mistura, aconselha a ler no original.
Bukowski será pouco conhecido em Portugal. As traduções são raras. Mas é certamente um dos mais fascinantes escritores do século 20. De origem alemã e, por isso, obtusamente referenciado nalgumas biografias como escritor alemão, Bukowski , mais do que americano, é um produto da Califórnia libertária.
A Los Angeles das suas deambulações não é habitada pelas estrelas de Hollywood, nem pelos elegantes corpos bronzeados, mas por pobres, prostitutas, vidas vagabundas, sórdidas, e por essas alcoólicas "moscas de bar" que deram título ao filme Barfly com Mickey Rourke. O enredo deste filme, que se resume a beber e andar à pancada, diz tudo sobre a temática linear de Bukowski. Na verdade, numa escrita autobiográfica o autor resume a sua existência à procura de duas coisas. Bebida e sexo. Nas maiores quantidades possíveis. É claro que, felizmente para nós, arranjou tempo para outra atividade. A da escrita.
À partida podemos perguntar o que pode haver de interessante num interminável relato de bebedeiras e engates. A vida sórdida, quando exemplar, e é este o caso, tem o dom de questionar a ordem geral das coisas. O vagabundo antissocial põe em causa as normas e transforma as vidas correntes num exercício profundamente patético.
De qualquer modo, a vida de Bukowski não é exemplo para ninguém. Ele próprio tratou de deixar o aviso na lápide tumular: "não tentem". Detestado pela moral dominante e pelas existências compostas, os seus livros foram e continuam a ser banidos por pais e instituições. Por vezes mesmo objeto de censura. Mas a marca ficou. Única e inimitável.
Frequentemente associado à chamada Beat Generation, de Ginsberg, Burroughs ou Kerouac, Bukowski tem na verdade pouco a ver com esta. Não chega à escrita infame por via da cultura, mas porque é assim mesmo. As suas novelas estão recheadas de picardias dirigidas a estes três escritores que considera uns snobs. Detesta e não frequenta o meio cultural. Quando Sartre, que o tinha considerado o maior poeta americano vivo, de passagem por Los Angeles o quis conhecer, ele declinou porque tinha uma garrafa para acabar.
Não sendo um intelectual tem gostos cultos, na música de Mahler e Rossini que atenuam as suas monumentais ressacas, na poesia de Céline de quem é um grande admirador. A ponto de o tornar na personagem central da derradeira novela, Pulp, um policial absolutamente delirante onde nem faltam alguns extraterrestres.
Para além da bebida o sexo é o grande tema da literatura de Bukowski. Mulherengo, abusador, amoral, não perde uma oportunidade de levar as mulheres dos amigos para cama, encara a sexualidade de forma prática e desconcertante. Quase mecânica. Não há romantismo, nem erotismo. Não há misoginia, como alguns pretendem. Bukowski gosta mesmo de mulheres ainda que só para o ato. E não é machista, no sentido exibicionista, já que muitos dos relatos descrevem a impotência por excesso de álcool. No livro Women uma namorada recomenda: se queres beber bebe, mas se queres sexo não bebas. Ao que ele responde: mas eu quero as duas coisas.
Bukowski é crítico, social e culturalmente, mas nunca é moralista. Em momento algum tenta converter os outros a causas ou ideias. A novela "Correios", das poucas traduzidas em português, relata os anos em que trabalhou a distribuir cartas. Descreve o nonsense e estupidez do trabalho, as rotinas alucinadas, a burocracia, a depravação das chefias. Resulta num panfleto contra a ideologia do trabalho. Mas sem proselitismo. A descrição dos factos é suficientemente poderosa.
Este artigo foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
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