Opinião
Lavar as mãos
Diz-me, simpático e solidário, o carteiro a quem me queixo de uma encomenda perdida pelos Correios: «Por isso é que eu pago um pouco mais mas uso outros serviços de entrega».
Diz-me, explícita e antipática, a funcionária da Segurança Social a quem me queixo de, depois de uma manhã inteira de chama-chama-ninguém-atende, a telefonista me ter encaminhado para a secção errada: «Não tenho nada a ver com isso».
O traço comum ao carteiro simpático e à funcionária antipática da Segurança Social é a desresponsabilização quanto ao desempenho das organizações em que trabalham. E não estão sozinhos nisso. O fenómeno é mais comum no serviço público mas também pode ser observado no sector privado e até em pequenos cafés, onde é mais óbvia a relação entre o dinheiro que pinga todos os dias e o que se recebe no fim do mês. Às vezes parece mesmo ser a regra em Portugal e, a julgar pelo à vontade com que os portugueses se demarcam das empresas para que trabalham, há-de haver aí um traço cultural qualquer.
Aparentemente, não convém estar satisfeito com o trabalho, e é feio envolver-se com o desempenho geral da empresa e não apenas com o cumprimento das exigências mínimas da função. O funcionário que vista a camisa da empresa corre o risco nada desprezível de sofrer uma pecha em tudo semelhante à de um «marrão» – note-se, aliás, que o tom pejorativo que se aplica à palavra revela que é na escola que os portugueses começam a aprender que a dedicação e o empenhamento são coisas de que se deve ter vergonha. Parece haver nisso uma forma muito peculiar (e zarolha) de esquerdismo, como se a preocupação com o desempenho da empresa fosse a preocupação com o conforto do patrão; como se o camarada cliente ficasse muito reconfortado quando o empregado, solidário, compreende a zanga e lhe estende, com ar de cumplicidade contente, o livro de reclamações, que também serve de pia (de pia, sim, onde se lavam as mãos).
É de se supor que algo de muito grave se passa num país onde nem o carteiro confia nos Correios e onde a funcionária da Segurança Social não tem «nada a ver» com os serviços da Segurança Social. E no entanto tudo se limita a ser como sempre foi, e nada me leva a crer que deixará de ser. Foi a maneira como nos organizámos. Mudar ia dar uma trabalheira!...
PS: A carrinha, pesadona, invade o passeio e por lá se fica. Digo ao condutor que aquilo é passeio público e não estacionamento particular. O condutor diz-me que eu devia estar preocupado mas era com os problemas do país, e acusa-me de ter sido um dos que puseram «esses no Governo». Quando o patrão não está à mão, sempre há «esses no Governo» para que nos desresponsabilizemos de tudo e de mais alguma coisa. Está bem visto, sim senhor.
PPS: O espancamento de uma mulher presa por agentes da Polícia Judiciária foi o que de mais grave aconteceu (ou o que de mais grave se deu a conhecer) em Portugal nos últimos tempos. Perto de semelhante brutalidade e da enormidade de semelhante desvirtuamento das atribuições e responsabilidades da instituição policial, as aventuras de Santana Lopes e Companhia não passam de «fait-divers».